quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O POETA LEITOR - Um estudo das epígrafes hugoanas na obra de Álvares de Azevedo

Enquanto aguardamos a publicação da dissertação de Mestrado  "O poeta-leitor: um estudo das epígrafes hugoanas na obra de Álvares de Azevedo", de autoria da Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves (FFLCH-USP, 1999), autoriza-se aqui a consulta digital e eventual reprodução, desde que identificada a fonte e atribuídos os respectivos créditos.

Retratos amplamente divulgados de Victor Hugo e Álvares de Azevedo, respectivamente. 



O POETA LEITOR - Um estudo das epígrafes hugoanas na obra de Álvares de Azevedo
Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves  






segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O REMORSO DA VISCONDESSA, 1887 - Conto de Júlia Lopes de Almeida - versão transcrita e ortografia atualizada

 

LUIZ GONÇALVES

 

A viscondessa era tida como uma senhora de espírito. Apesar de míope, nada escapava a sua perspicaz e fina observação. Era mesmo o que se pode chamar de uma mulher superior.

Casara por despeito, logo o amor não tivera o trabalho de intervir nessa aliança. De resto, a esposa que ama afiançava ela, torna-se escrava do marido, enquanto que uma, que se casou por...por casar-se enfim, conserva sempre a sua independência.

O visconde era um homem politico, passava horas inteiras no seu escritório, inventando todas as possibilidades de vir a ser ministro.

Tinham uma filha, morena, viva, alegre, volúvel, espelho onde inteira se refletia a alma.

- O que tencionas fazer da tua Judith?

- Que pergunta! uma senhora adorável, alegre, gentil, feliz.

- Isso por força, o que pergunto é se lhe darás agora uma preceptora estrangeira, ou se a meterás num colégio; ela já tem quase dez anos e...

- E não lhe dou nem uma nem outra cousa.

- Oh! Viscondessa!

- Escuta, Eugenia: convence-te de que a mulher não deve ser instruída, se quiser ser venturosa. Foste sempre muito romanesca, eu tenho o espírito mais prático e falo, portanto, com toda a autoridade. Estou com quarenta anos quase; tenho pensado, visto muito, e crê que as porcas mulheres verdadeiramente felizes, que encontrei, não são inteligentes. Nota bem: uma menina de grande instrução será invejada pelas outras e sofrerá as consequências de mil rivalidades, que, mesmo por serem rasteiras e pequeninas, a farão perder a paciência um dia. Será temida por uns e ridicularizada por muitos. Se eu ampliar o espirito da minha Judith num requintado apuro, ela não abafará com certeza os seus pensamentos, procurará manifestá-los, e terei assim o desgosto de vê-la...escritora, por exemplo.

- Desgosto?!

- Sim. Há um pronunciado horror pelas bas-bleus, bem sabes. Eu por mim detesto-as.

- Tu!

Não tanto como os homens. Se minha filha fosse escritora, quem se lembraria de casar com ela? Ninguém, e não ignoras que só no casamento está o verdadeiro futuro da mulher. Se eu pudesse viver muito e ter sempre comigo o meu tesouro! Concluiu a viscondessa, passando os dedos por entre os negros cabelos da amada Judith.

- Mas, tornou-lhe a amiga, se ela manifestar talento pelas artes, a escultura, a pintura?

- Ta...ta...ta! Nada disso! Os artistas não são felizes. Sempre ouvi dizer que as melhores inspirações são as que brotam da tristeza, e eu, entre um quadro ruim e uma valsa, não vacilo.

- Não entendo.

- Eu me explico. Se minha filha for, como quero, feliz, terá o seu pensamento absorto na própria felicidade e trabalhará por mero capricho, muito imperfeitamente, portanto; porém, se se entusiasmar, perderá horas de sono e de alegria, será ambiciosa, sedenta de glorias, e, como isso não alcança com facilidade, terá que chorar amargos desenganos.

- Pensas erradamente. Sou pobre, melhor do que ninguém o sabes, pois juro que hei de lutar ferrenhamente para instruir minha filha. Santo Deus! Quanta mulher ignorante vive isolada e arrepelando-se por não ter a compensação do saber! Não faças tão mau conceito dos homens! E, antes de tudo, imagina que a mulher instruída não vacilará, não sucumbirá, se um dia se vir só! Depois a tua Judith está numa posição muito alta, para não ser censurada, se for ignorante.

- Oh! Mas Judith será atraente, vestirá bem, montará bem, cantará romances...Que mal faz! Aparentará educação brilhante, que tem espirito para isso; fará impressão nas salas, que é afinal o que mais seduz as mulheres.  Não a constranjo, pois, aprenda o que quiser aprender, sem fadiga nem sacrifício.

- Bem, não falemos mais nisso.

E não falaram. Eugenia, viúva de um advogado pobre, retirou-se o mais que pode da sociedade, tendo o cuidado extremoso de ensinar a sua loira Amelia tudo o que podia. O tempo passou rápido para a viscondessa, que entretendo espirituosamente relações, não perdia bailes, concertos, saraus, tudo onde se distraísse. A sua Judith acompanhava-a sempre. O trato da sociedade é o melhor mestre, dizia ela à filha, que aprovava contente estas palavras. Judith cresceu. Era a imagem da mãe: baixinha, trigueira, mimosa, olhos aveludados, boca pequena, um encanto. Por isso não se admiraram quando um dia a foram pedir em casamento. Era um rapaz rico e elegante...Excelente! Judith casou.

Foi o primeiro dia de dor para a viscondessa. Via a filha tão alegre no seu vestido de noivado, tão despreocupada, tão bem, e sentia o coração apertar-se mais e mais, e fugia da sala para que não lhe notassem a comoção!...

Eugenia e Amelia procuravam consolá-la um pouco. Finda a cerimonia, a noiva partiu e a viscondessa desatou a chorar.

*

*           *

         Havia decorrido quatro anos. Amelia perdera a sua terna mãe, dias depois do casamento da amiga, e pediu, invocando toda sua coragem, uma recomendação da viscondessa. Via-se só, desejava entrar como educadora para a casa de alguma boa família. Foi satisfeito o pedido. A mestra tinha-se habituado já ao plácido viver da província, era da província a família que a tinha acolhido quando recebeu um dia este bilhete:

                  “Boa Amelia.

         Em vez de ensinar crianças, venha consolar uma velha. Estou só. Judith tem tantas preocupações que me não pode dispensar o seu tempo. Conversaremos aqui.

Sua amiga

                                                                                           Mathilde”

A viscondessa assinava com nome próprio! Amelia entristeceu-se lendo aquela carta. Ia responder que, não tendo concluído ainda a educação das discípulas, não sairia da casa, onde tantas atenções lhe eram dadas, mas refletiu; “a viscondessa era amiga de minha mãe...vou!”

E foi.

A viscondessa estava doente, nervosa, triste. Amelia procurava amenizar-lhe o espirito; ora tocava uma musica, que lhe trouxesse uma recordação agradável, ora lia, ora obrigava-a fazer um pequenino passeio dando-lhe carinhosamente o braço.

Uma noite, sentadas ambas ao pé da mesa, conversavam. A luz batia sobre a cabeça de Amelia, pondo uns reflexos fugitivos nos seus cabelos loiros. A viscondessa sorria ouvindo pela milésima vez falar a sua companheira da maneira deliciosa por que passava os serões no tempo da mãe.

- Olhe, senhora viscondessa, dizia, ficávamos as duas bem juntinhas; ela bordava, eu lia alto e estudava, era tão bom! Com que paciência me ensinou! Que santa que ela era!...Se há coisa que me pareça impossível, é não ter eu morrido quando morreu a sua boa amiga...

E levava a tecer elogios à finada, enquanto a viscondessa dizia para si: “como deve ser feliz a mãe, que é amada assim!”

Uns passos ligeiros interromperam as palavras saudosas de Amelia; a porta do corredor impelida com força abriu-se de par em par, e a figurinha nervosa de Judith apareceu no salão. Vinha pálida, os olhos brilhantes, os lábios trêmulos.

- Que é isto?! Perguntou a viscondessa admirada.

- Briguei com meu marido, respondeu Judith, atirando para longe de si a manta de rendas pretas.

- Tu?! ...Por quê!?...Oh! Filha, diga!

- Por uma ninharia, minha mãe...por causa de um vestido! É ridículo?...Não sei, é isto!

- Oh! Mas teu marido está a rir-se de ti, criança! Acalma-te, eu vou escrever-lhe para que venha falar-me.

- É inútil. Não nos veremos mais.

- Isso dizes agora...

- Foi o que ele me disse há pouco...

- Luiz acusou-me de perdulária, supérflua, volúvel; que brinquei com sua fortuna deixando-a cair por entre os dedos; que sou caprichosa e que o fiz muito desgraçado. Enganaste-me, tu não me amavas, casaste por casar e não me fazes feliz! O amor iludiu-me, pensei dar meu nome a uma mulher extremosa, e que o casamento tornaria grave, sensata, e dei-o a uma criança estroina, estragada, irremediavelmente estragada por uma educação defeituosa...

Oh! Ele disse tudo isso e calei-me... porque ele tem razão!

A viscondessa gelada sentia uma dor aguda no peito, como se lhe fincassem um punhal.

Indignada, subiu-lhe o sangue às faces e um tremor abalou-lhe o corpo enfraquecido. Amelia compreendeu-a e, querendo atenuar aquela agitação, beijou-a pensando: “em nome de minha mãe.”

Aquele beijo terno à viscondessa pareceu sentir a invocação da alma da amiga, cujos conselhos dispensara sempre; todo o sangue afluiu-lhe pesadamente ao coração e, estendendo os braços à chorosa Judith, murmurou num soluço:

- Perdoa-me!

 

                                                                                                          Rio de Janeiro, 1885.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Acta est fabula. IN: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.

Versão transcrita e atualizada pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves - rodrigues.alves@unesp.br


O REMORSO DA VISCONDESSA , 1887 - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original

 

A  LUIZ GONÇALVES


A viscondessa era tida como uma senhora de espírito. Apezar de myope, nada escapava á sua perspicaz e fina observação. Era mesmo o que se pode chamar de uma mulher superior.

Casára por despeito, logo o amor não tivera o trabalho de intervir n’essa aliança. De resto, a esposa que ama affiançava ella, torna-se escrava do marido, emquanto que uma, que se casou por...por casar-se emfim, conserva sempre a sua independência.

O visconde era um homem politico, passava horas inteiras no seu escriptorio, inventando todas as possibilidades de vir a ser ministro.

Tinham uma filha, morena, viva, alegre, voluvel, espelho onde inteira se refletia a alma da

- O que tencionas fazer da tua Judith?

- Que pergunta! uma senhora adorável, alegre, gentil, feliz.

- Isso por força, o que pergunto é se lhe darás agora uma preceptora estrangeira, ou se a metterás n’um collegio; ella já tem quase dez anos e...

- E não lhe dou nem uma nem outra cousa.

- Oh! Viscondessa!

- Escuta, Eugenia: convence-te de que a mulher não deve ser instruída, se quiser ser venturosa. Foste sempre muito romanesca, eu tenho o espirito mais pratico e falo, portanto, com toda a autoridade. Estou com quarenta anos quase; tenho pensado, visto muito, e crê que as porcas mulheres verdadeiramente felizes, que encontrei, não são inteligentes. Nota bem: uma menina de grande instrucção será invejada pelas outras e soffrerá as consequências de mil rivalidades, que, mesmo por serem rasteiras e pequeninas, fal-a-hão perder a paciência um dia. Será temida por uns e ridicularizada por muitos. Se eu ampliar o espirito da minha Judith n’um requintado apuro, ella não abaffará com certeza os seus pensamentos, procurará manifestal-os, e terei assim o desgosto de vel-a... escriptora, por exemplo.

- Desgosto?!

- Sim. Há um pronunciado horror pelas bas bleus, bem sabes. Eu por mim detesto-as.

- Tu!

Não tanto como os homens. Se minha filha fosse escriptora, quem se lembraria de casar com ella? Ninguem, e não ignoras que só no casamento está o verdadeiro futuro da mulher.  Se eu podesse viver muito e ter sempre commigo o meu thesouro!... concluiu a viscondessa passando os dedos por entre os negros cabelos da amada Judith.

- Mas, tornou-lhe a amiga, se ella manifestar talento pelas artes, a esculptura, a pintura?

- Ta...ta...ta! nada d’isso! Os artistas não são felizes. Sempre ouvi dizer que as melhores inspirações são as que brotam da tristeza, e eu, entre um quadro ruim e uma valsa, não vacilo.

- Não entendo.

- Eu me explico. Se minha filha f|õr, como quero, feliz, terá o seu pensamento absorto na própria felicidade e trabalhará por méro capricho, muito imperfeitamente, portanto; porem, se se enthusiarmar, perderá horas de somno e de alegria, será ambiciosa, sedenta de glorias, e, como isso não alcança com facilidade, terá que chorar amargos desenganos.

- Pensas erradamente. Sou pobre, melhor do que ninguém o sabes, pois juro que hei de luctar aferradamente para instruir minha filha. Santo Deus! Quanta mulher ignorante vive isolada e arrepelando-se por não ter a compensação do saber! Não faças tão máu conceito dos homens! E, antes de tudo, imagina que a mulher instruída não vacilará, não succumbirá, se um dia se vir só! Depois a tua Judith está n’uma posição muito alta, para não ser censurada, se fôr ignorante.

- Oh! Mas Judith será atraente, vestirá bem, montará bem, cantará romances...que mal faz! Apparentará educação brilhante, que tem espirito para isso; fará impressão nas salas, que é afinal o que mais seduz as mulheres.  Não a constranjo  pois, aprenda o que quizer aprender, sem fadiga nem sacrifício.

- Bem, não falemos mais n’isso.

E não falaram. Eugenia, viúva de um advogado pobre, retirou-se o mais que poude da sociedade, tendo o cuidado extremoso de ensinar á sua loira Amelia tudo o que podia. O tempo passou rápido para a viscondessa, que entretendo espirituosamente relações, não perdia bailes, concertos, saraus, tudo onde se distahisse. A sua Judith acompanhava-a sempre. O trato da sociedade é o melhor mestre, dizia ella á filha, que aprovava contente estas palavras. Judith cresceu. Era a imagem da mãe: baixinha, trigueira, mimosa, olhos aveludados, bocca pequena, um encanto. Por isso não se admiraram quando um dia a foram pedir em casamento. Era um rapaz rico e elegante...excellente! Judith casou.

Foi o primeiro dia de dôr para a viscondessa.Via a filha tão alegre no seu vestido de noivado, tão despreocupada, tão bem, e sentia o coração pertar-se-lhe a mais e mais, e fugia da sala para que não lhe notassem a comoção!...

Eugenia e Amelia procuravam concolal-a um pouco. Finda a cerimonia, a noiva partiu e a viscondessa desatou a chorar.

*

 *           *

         Haviam decorrido quatro anos. Amelia perdera a sua terna mãe, dias depois do casamento da amiga, e pediu, invocando toda sua coragem, uma recomendação da viscondessa. Via-se só, desejava entrar como educadora para a casa de alguma boa família. Foi satisfeito o pedido. A mestra tinha-se habituado já ao plácido viver da provinsia, eraa da província a família que a tinha acolhido, quando recebeu um dia este bilhete:

                  “Boa Amelia.

         Em vez de ensinar creanças, venha consolar uma velha. Estou só. Judith tem tantas preocupações que me não póde dispensar o seu tempo. Conversaremos aqui.

Sua amiga

                                                                                           Mathilde”

A viscondessa assignava com nome próprio! Amelia entristeceu-se lendo aquella carta. Ia responder que, não tendo concluído ainda a educação das disxcipulas, não sahiria da casa, onde tantas atenções lhe eram dadas, mas reflectiu; “a viscondessa era amiga de minha mãe...vou!”

E foi.

A viscondessa estava doente, nervosa, triste. Amelia procurava amenizar-lhe o espirito; ora tocava uma musica, que lhe trouxesse uma recordação agradável, ora lia, ora obrigava-a fazer um pequenino passeio dando-lhe carinhosamente o braço.

Uma noute, sentadas ambas ao pé da mesa, conversavam. A luz batia sobre a cabeça de Amelia, pondo uns reflexos fugitivos nos seus cabelos loiros. A viscondessa sorria ouvindo pela miléssima vez falar a sua companheira da maneira deliciosa porque passava os serões no tempo da mãe.

- Olhe, senhora viscondessa, dizia, ficávamos as duas bem juntinhas; ella bordava, eu lia alto e estudava, era tão bom! Com que paciência me ensinou! que santa que ella era!...se há cousa que me pareça impossível é não ter eu morrido quando morreu a sua boa amiga...

E levava a tecer elogios á finada, emquanto a viscondessa dizia para si: “como deve ser feliz a mãe, que é amada assim!”

Uma passos ligeiros interromperam as palavras saudosas de Amelia; a porta do corredor impelida com força abriu-se de par em par, e a figurinha nervosa de Judith apareceu no salão. Vinha pallida, os olhos brilhantes, os lábios trêmulos.

- Que é isto?! Perguntou a viscondessa admirada.

- Briguei com meu marido, respondeu Judith atirando para longe de si a manta de rendas pretas.

- Tu?! ...Porque!?...oh! filha, dize!

- Por uma ninharia, minha mãe...por causa de um vestido! É ridículo?...não sei, é isto!

- Oh! Mas teu marido está a rir-se de ti, creança! Acalma-te, eu vou escrever-lhe para que venha falar-me.

- É inútil. Não nos veremos mais.

- Isso dizes agora...

- E disse-m’o elle há pouco...

- Luiz acusou-me de perdulária, supérflua, volúvel; que brinquei com sua fortuna deixando-a cahir por entre os dedos; que sou caprichosa e que o fiz muito desgraçado. Enganaste-me, tu não me amavas, casáste por casar e não me fazes feliz! O amor iludiu-me, pensei dar meu nome a uma mulher extremosa, e que o casamento tornaria grave, sensata, e dei-o a uma creança estroina, estragada, irremediavelmente estragada por uma educação defeituosa...

Oh! Elle disse tudo isto e calei-me...porque elle tem razão!

A viscondessa gelada sentia uma dôr aguda no peito, como se lhe fincassem um punhal.

Indignada, subiu-lhe o sangue ás faces e um tremor abalou-lhe o corpo enfraquecido. Amelia compreendeu-a e, querendo atenuar aquella agitação, beijou-a pensando: “em nome de minha mãe.”

Áquele beijo terno a viscondessa pareceu sentir a invocação da alma da amiga, cujos conselhos despensára sempre; todo o sangue affluiu-lhe pesadamente ao coração e, estendendo os braços á chorosa Judith, murmurou n’um soluço:

- Perdoa-me!

 

                                                                                                          Rio de Janeiro, 1885.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Regina. In: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.

Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A ESCRAVA, (1887) - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original

A ESCRAVA 
A LUISA DA MOTTA CARDOSO 

Tinhamos partido de Campinas, a tranquilla cidade da provincia de S. Paulo, ás nove horas da manhã. O dia estava frio; um bello dia de Junho, tranparente e doirado. Na estrada as rodas dos trolys levantavam uma nuvem de pó avermelhado e fino; sentia-se o aroma sadio das mattas aos lados. Quando chegámos á fazenda — Monte-Belo — ouvimos gritos de alegria. É que ao bater o lá no alto a cancella do pasto, cercado de profundos vallos, estendendo-se como um enorme tapete de verdura liso e fofo, a familia da casa correu ao alpendre, recebendo amavelmente os hospedes. 
Entrámos no grande terreiro ao som das vivas creanças e do latido dos cães. 
Achávamo-nos em pleno campo paulista. Acabados os primeiros cumprimentos, fomos reparar as nonas toilettes. O meu quarto, um pequeno quarto branco, com um lavatorio de madeira a um canto, uma cortina de chita salpicada de roxo a tapar os cabides fixos na parede, mesa de cabeceira coberta com crochets e leito á antiga, dito, alto, vestido de novo, tinha uma janella. Divisava-se d'alli um trecho da paysagem que nos rodeava. Lá em baixo o lago, grande, oval, como uma chapa de metal palido sobre a pellucia verde do gramado em volta. N'agua uns gansos alvos e uns marrecos bravos pennas furta côres e brilhantes. Alem os campos da pastagem, semeados de animaes. Ao fundo a linhaescura da floresta. 
Os negros andavam risonhos de um lado para o outro cantarolando e rindo. Era o seu maior dia de festa, a vespera de S. João. 
A dona da casa passou o dia a fazer dôce para a ceia dos escravos; a filha mais velha a recortar papeis de côres para o capacete de um d'elles, que devia apparecer de general e para a corôa de outro que havia de ser o rei. 
Deixando-as n'essa occupação fui com algumas amigas passear a pé. Descemos uma collina sombreada de limeiras e paámos defronte do moinho em descanço. 
A agua passava em borbotões por entre os raios negros da grande roda fixa e silenciosa. Entrámos; a nó estava pousada no fundo. Uma quietação pasmosa em tudo! Démos volta e subimos pelo laranjal passando pela grande casa da machina, fechada e triste. Atravessámos o extensissimo terreiro de café, cimentado e varrido escrupulosamente e descemos do lado opposto ao moinho, indo ter á casa da Rosalia, a preta velha, guarda do gallinheiro alli ao pé. 
Ella cosia sentada ao sol, contando historias a umas creanças pretas tambem. Ao ver-nos levantou-se e estendendo-nos as mãos postas murmurou louvado da estylo. 
— Olha Rosalia, disse a filha maes nova do dono da fazenda, que nos acompanhava, vá para casa, não fique aqui em baixo, ouviu? 
Rosalia curvou tristemente a cabeça e respondeu contrafeita: nhá, sim! 
É singular! pensava eu commigo, a velha mostra preferir ficar aqui, n'este isolamento! 
Seguimos por uma grande rua de bambús cerrados como enormes paredes de verdura e fomos ter á horta. No chão estendia-se uma renda de sombras das follhas das parreiras e das latadas de maracujá. 
As ramas vaporosas dos espargos ondulavam brandamente. Os grandes repolhos de um verde azulado erguiam as cabeças redondas e duras d'entre as largas folhas arroxadas das beterrabas. Pendiam carregadas as hastes dos guandos. Da horta passámos ao jardim, atravessando pelas ruas de jasmins do Cabo e pelo canteros gramados, onde se destacavam alegremente as grandes rosas vermelhas e os bouquets azues das hortencias. Entrámos de novo em casa, e uma hora depois sentava-mos á mesa do jantar. 
  Quando nos levantámos era quasi noite. Os negros dançavam lá fora acompanhados pelas pancadas surdas do batuque. No terraço, ao fundo, estava já posta a sua grande ceia. Cessou então a dança e começaram os brindes. Os arrojados romperam nos mais bestialogicos discursos que imaginar possam. Os menos afoitos e mais delicados partim á faca, espetando com o garfo, o pão no prato. Outros, mais philosophos, comiam vorazmente sem se perturbarem com aquelle scenario tão extraordinario  para elle, e ainda outros, depois, depois terem saboreado doces d'ovos, de leite ou de batata em calices, acceitavam umas empadas de gallinha ou um boccado de leitão. Alguns recitavam versos, e faziam saúdes cantadas; raros eram os que se deixavam em silencio. 
Mas onde estava a Rosalia, que por ninguem foi vista? 
Acabou-se a ceia, e sahiram todos sem pensar na velha! Voltaram para a dança ao ar livre, illuminada pelas labaredas avermelhadas das fogueiras, onde as creanças assavam canas e carás. Os parentes e convidados da casa jogavam e dançavam nas salas. Eu preferi debruçar-me na grade de madeira da varanda fóra, apezar do frio, a ver dançar os negros. Elles possessos, cantando n'uma toada melancholica, executando as mais extravagantes posições, desenhavam-se como sombras phansticas no clarão avermelhado das luzes. As mucamas requebravam-se, inclinando sobre o hombro a cabeça bem penteada de carapinha fota, enfeitada de borboletas e de estrellas de aço, e levantando de vez em quando os braços arqueadamente. Depois sahiam os pagens, dançando com uns passos miudinhos, de calcanhares quasi unidos, recuando, avançando e torcendo, para acabar, o corpo n'uma volta rapida; os outros paravam fazendo circo e rompiam depois em saltos e cabriolas. 
E são homens! Santo Deus! pensava eu contemplando esses vultos negros, nervosos, que se crusavam nas mais absurdas reviravoltas, com uma alegria brutal. 
Cançada, retirei-me para dentro. Passei pelo corredor e ia atravessando a saleta de estudo das meninas, a mais solitaria, quando notei a um canto uma rede vazia. Deitei-me n'ella. 
A pouco e pouco os olhos foram-se habituando á meia claridade d'esse quarto silencioso. De repente ouvi um suspiro debil como o de uma creança adormecida, voltei a cabeça e vi sentada encolhidamente no chão  uma negra velha, a Rosalia. 
Perguntei-lhe porque não se reunia aos seus, dançando ou vendo danças os outros. 
Ella approximou-se e disse com voz chorosa: 
Ah! Sinhásinha, eu não posso ver o Samba... 
Mas porque? 
Os olhinhos avermelhados da negra brilharam na escuridão. Ouvi-lhe a respiração offegante. Por fim contou-me ao seu modo, n'aquella linguagem meio africana, impossivel de reproduzir, e sem phrases de estylo, n'uma simplicidade commovente, que me ia directamente ao coração, que seu unico filho, o Vicente, que tinha sido a flor dos pagens da fazenda e que dançava como ninguem... morrêra-lhe, e de que morte!... Desde então fazia-lhe mal, a ella, ouvir cantar e ver dançar os negros... 
Um dia acompanhára Vicente o senhora á cidade, e de volta para casa partiu da floresta um  tiro, que o deitou do cavallo abaixo, o assassino errara o alvo. O dono da fazenda chegou pallido e a todo galope a Monte-Bello, dando ordem para que fossem buscar o cadaver do pagem... 
Rosalia, com os braços no ar e a lamentar-se aos gritos, atravessou correndo os campos indo encontrar o seu filho estirado na estrada; já o não ouviu respirar, estava morto! Os parceiros vieram e deitaram-n'o n'uma rede. A mãe caminhava atraz, pisando o sangue que se se estendia como rastro cahindo gotta a gotta... do corpo de Vicente. 
Rosalia calou-se e eu parecia-me vel-a n'essa tarde de outomno, bella e ligeiramente fria, de uma claridade suave e doce, a seguir sem apoio o cadaver do filho, pisando descalça a longa fita vermelha de seu proprio sangue! 
O batuque continuava lá fora com o mesmo ardor, sentia-se o crepitar das fogueiras, o alegre rumor das vozes... Rosalia levantou-se e poz-se a embalar-me a rede até que adormeci... 

Lisboa, 1887.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Regina. In: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.



Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves



domingo, 27 de outubro de 2019

REGINA, (1886) - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original



Encontrei-a a bordo do Arauva, o grande paquete escocez, que me devia trazer do Rio de Janeiro a Inglaterra. 
Na vespera tinham-me dito: 
– Vae ter uma bella companheira de viagem, a Regina Camargo. 
– Sim?! exlamou a meu lado o dr. Figueiredo muito attonito; a Regina vae! e com quem?
– Com a avó. 
– Devéras!? 
E na physionomia de Figueiredo tranparecia o desgosto. 
– A Regina vae! a Regina vae! repetia elle opprimido; mas de repente: 
– É impossivel ! a baroneza está velha e não terá o mau gosto de viajar só com a neta...
– Porque não? a baroneza foi sempre muito independente... 
– Pois sim, mas... quer-me parecer que está enganado. 
– Affianço-lhe, doutor. Vi os passaportes no escriptorio da agencia. 
– Mas quem é Regina? perguntei já mordida de curiosidade. 
– É a menina mais elegante das Laranjeiras, disse o Figueiredo. 
– E a mais rica, observou o outro. 
– E a mais bonita, affirmou o primeiro. 
– E a mais instruida, concluiu o segundo. 
E davam-me os parabens. Na verade não podia haver melhor companhia n'uma longa e monotona viagem por mar, diziam todos. A Regina é talentosa, graciosissima, tem muito espirito e é amavel. Canta como um canario, e ri como uma criança... adoravel a Regina! Verá! 
– Eu conheci-a em Petropolis, disse o doutor, ha dois verões. Tinha saido do collegio havia pouco; contudo parecia ter já longa pratica da sociedade. Vestia bem... 
– Tem muito gosto, tem interrompeu o outro. 
Dançava perfeitamente, representava comedia de salão em graça fina, leve, e uma ironia subtil, deliciosa! A baroneza retirou-se antes da chegada do inverno para o Rio, cançadade ouvir pedir a neta em casamento. Fez uma esplendida entrada no mundo social aquella pequena... Antes ninguem ouvira fallar n'ella. Esteve nas Irmãs de Caridade até aos dezesete annos! Dizem que a avó não queria perturbar o socego do seu silencioso viver chamando para junto de si aquelle formoso diabrete... 
– Admira-me o estar ainda solteira, objectava um d'elles.
– Não lhe faltam noivos, mas... não tem querido. A avó a cada pedido que lhe fazem ri-se e responde; se ella quiser... pergunte-lh'o meu amigo! 
O amigo, ou não pergunta percebendo a malicia, ou, se cahe na asneira de o fazer, ouve um não, entre duas risadinhas de crystal... 
– É uma rapariga original; nunca se apaixonou... 
– A primeira vez que entrei em sua casa, continou o doutor, foi o anno passado; apresentou-me um amigo familia o Araujo de Andrade, que... 
Sei, sei... 
– Bem, pois foi elle quem me levou lá. Antes de entrar no jardim parei um momento indeciso, acanhado como um rapaz de quinze annos! Atravez da grade, mal enleada por uma trepadeira de perfumosas flores côr de leite, vi as janellas abertas abertas do rez-dechasée iluminadas, e uma sombras, que se moviam lá dentro por detraz das cortinas de renda e que não pude distinguir bem. Arrastado pelo meu bom Araujo, entrei. Passá-mos na verdade uma encantadora noite. Regina, mergulhada n'um fôfo divan escarlate de arabescos vivos, vestida de escuro, destacava-se magestosa d'aquelle fundo de tecido arabe. N'uma cadeira de balanço austriaca, em frente ao piano, a baroneza, recostada indolentemente, abonava-se com uma ventarola de palha, onde pendêra um ramo de ipomêas côr de sangue, frescas e brilhantes. N'uma mesa a um canto conversavam alegremente umas meninas da visinhança, amigas de Regina. Pareceu-me estar mesmo vendo agora a sala... 
O Araujo tinha intimidade alli e apresentou-me com phrases lisongeiras. Conversámos muito. A baroneza, que estivera longo tempo silenciosa, piscando os olhinhos myopes, voltou-se para o meu amigo (lembro-me tão bem...) e perguntou-lhe o que fizera da sua esmeralda que era o encanto de toda gente, e que elle não trazia no dedo havia já uns poucos dias... Um áparte de Regina fez-me perder a resposta do Araujo. Quando voltei a ouvil-os, dizia a baroneza: 
– Nós as brazileiras temos a mania das flores e das pedras. Eu por mim, confesso, sou grande admiradora de uma e de outras. Desde creança professo o culto d'essa religião. O barão apaixonou-se por me ver sempre com um ramo de flores... e ainda hoje, apesar de velha, vejam, dizia, ella apontando para as ipomêas da ventarola, não deixo de usal-as. Foi por causa das flores e das pedras que aliviei meu luto de viuva, aliás tel-o-hia conservado até hoje; mas abandonar no fundo escuro de uma gaveta umas saphiras, que estão mesmo a desafiar a luz, e deixar morrer nas roseiras umas flores esplendidas e dignas de uma viagem á rua do Ouvidor, seria crueldade indigna de uma mulher de gosto; não acha? 
O Araujo dizia que sim, e que elle já notáva o que a baroneza acabava de dizer, que nenhuma mulher mais do que a brasileira adora as scintillações das pedrarias e a graça gentilissima das flores... 
Regina interrompeu a conversa com uma romanza de Denza. 
Passei umas horas realmente bellas. Dias depois voltei, e no fim de um mez... dizia-me a baroneza, concluindo uma conferencia que tivera commigo a sós: 
Se ella quizer... pergunte-lh'o meu amigo.
Pois saibam que fui sufficientemente tolo para lh'o perguntar, e por isso ouvi, como muitos outros, antes de mim, um – não – entre duas risadinhas de crystal... 
Não voltei a casa de Regina, cortei, familia; vejo-a raras vezes, mas tenho pena que vá para a Europa. 
Emfim, por um lado folgo, porque d'esse modo terá a minha querida amiga, disse voltando-se para mim, uma bella companheira de viagem. 
No outro dia embarquei ao entardecer. Uma bella tarde de março aquella, quente e brilhante. Entregue n'essa occasião á tristeza da despedida, não reparei em Regina, que conversava rindo com diversos, que a cercavam lisongeando-a muito. 
Ás 8 horas dirigiram-se para terra os amigos, que tinham vindo acompanhar ao bota-fora os viajantes. Os escaleres cortavam a agua na direcção da terra; destacavam-se na sombra, como azas candidas agitando-se tremulas, os lenços em repetidos adeuses... Fomos deixando de distinguir esses signaes, a que do alto da amurada correspondiamos. A pouco e pouco, como figuras indecisas, perderam-se de todo na escuridade! O olhar então se seguiu, seguiu a luz avermelhada da lanterna da prôa do escaler, que se ia affastando, esmorecendo na distancia, extinguindo-se como a luz do olhar do moribundo, perdendo-se ao longe, como uma saudosa estrella... 

*
* *

No dia seguinte subi para o tombadilho. 
O sol mordia a superficie quebrada do mar, que faiscava luminosamente. Um ar livre, puro, forte enfunava as grandes velas do Arawa.
Não ha nada mais salutar, mais purificador para as organisações doentias do que essas esplendidas manhãs de bordo. 
Os pulmões dilatam-se áquelle ar queima a gente. A vista estende-se pelo azul limpido a fóra, por todo o enorme globo transparente e brilhante. 
A ideia do perigo de nos acharmos isolados n'aquella vastidão , como que lhe duplica o encanto... 
Bello dia aquelle; as inglezas admiravam-n'o, trocando as suas exclamações gutturaes. Os passageiros vindos da Australia e da Nova Zelandia observavam attentamente os chegados na vespera do Rio. 
Regina principalmente attrahia a attenção de quasi todos. Passeava de um a outro extremo conversando em inglez com o capitão, que a seguia ao lado, curvando para ella a cabeça e alisando com a mão direita a barba muito loira. 
Ella ia olhando para a frente, para o espaço, sem reparar em ninguem, só quando o commandante fallava, é que volvia o rosto, demorando n'elle os seus grandes olhos serenos e escuros, muito escuros. 
Cançada naturalmente do passeio, Regina sentou-se n'uma cadeira de lona, despedindo-se com um gesto amavel do commandante, que minutos depois voltou, trasendo um livro; ella riu-se, trocou ainda algumas palavras, e principiou a ler logo que ele desceu. 
Um inglez a meu lado occupava-se então em desenhar Regina, n'uma folha da sua carteira; detinha n'ella o olhar, e retirava-o para o papel, onde com verdade e nitidez reproduziu n'uma miniatura graciosissima a sua figura gentil. Ella alli estava tal e qual, com o seu airoso vestido de xadrez muito simples e distincto; esbelta, fina, elegante; recostada na cadeira, mostrando sem affectação os pésinhos estendidos, bem feitos, calçados á ingleza, sapato de pellica de pequeno salto, atado com um grande laço no tornozello sobre a meia de seda preta. 
O inglez, notando a minha curiosidade, entregou-me aqui o retrato de todos os passageiros... é uma lembrança de viagem como outra qualquer e mostrava-me: olhe: aqui está o reverendo Mr. Cumbs, aquelle que lá vem... 
– Perfeito! Mr. Cumbs... baixo, grosso, todo vestido de preto, com um chapeu de feltro de abas largas, a sombrear-lhe o rosto sem barba. Aqui esta, é Miss Moore... original!... cara de menina em corpo de rapaz, vestido escorrido muito curto; gorro de velludo mal assente sobre o cabello loiro-cinzento. Aqui, esta, é Miss Cumbs, irmã do reverendo; muito alta, muito magra, chapeu coberto de cambraia branca, e vestida com uma singeleza atroz... 
– E este?
– É o médico de bordo, homem alto, gordo, corado, todo vestido de branco inclusive os sapatos. 
E passou-me deante dos olhos a galeria pittoresca dos passageiros todos. Agora era uma pequena, filha de Mrs. Russel, Eva, com o seu annelado cabello côr de fogo, olhos intelligentes, bibe ellegantemente posto; d'ahi a nada, um creado, o George, correcto, attencioso, bemperfilado, com o guardanapo pendente do braço... mais adeante, tres raparigas, irmãs de um negociante australiano, e australianas tambem, muito parecidas, e tanto que elle, não as distinguindo, confundia-lhes os nomes... 
Ia principiar a explicação d'um novo personagem..  quando o interrompeu o metalico tam-tam, chamando para o lunch
O inglez, cortejando-me á pressa, fechou a sua grande carteira e desceu rapidamente a escada. 
Uns interromperam a leitura, outros a conversa, e ainda outros o somno. 
Desci por ultimo a escada atapetada, com frisos de metal amarello e corrimão de madeira polida. 
Na grande sala de jantar tiniam os talheres dos mais impacientes, alguns já iam mesmos pelas altteras da fructa. 
O meu lugar á mesa era ao lado do de Regina. Entabolámos ahi conversação sobre não sei que assumpto futil. 
A avó enjoára e nçao tinha animo para levantar a cabeça da almofada, não podia sahir do camarim. 
Em frente de nós, um sujeito magro, de longa barba grisalha, accumulava no prato gelatinas, gomos de laranja mal descascada, arroz, uma arroz muito branco, coroado de doce de ameixas, que não deixava de apparecer nunca, e que tinha n'elle um grande apreciador. 
Ao lado d'esse intoleravel gastronomo, sentava-se em seu patricio, um verdadeiro John Bull, a quem pela seriedade inalteravel deram a bordo o nome de – o sinistro. 
Á esquerda de Regina ficava o logar vazio da avó, á sua direita eu; não tinha portanto, outra companheira a essa hora; e sem reservas, n'uma maneira franca e grausa, dirigiu-me a palavra. Conversámos largamente. Quando subimos, passeámos juntas no convéz e jogámos uma partida de malha. 
Não me tinham exaggerado as suas qualidades. Regina era adoravel, bonita, intelligente, affavel, despretenciosa, chic. 
Chic! é realmente a melhor classificação – vestia-se bem, fallava com graça. 
De manhã cedo, quando atravessáva o corredor para o quarto de banho, envolta nas largas dobras do seu peiggnoir forrado de seda, com as tranças negas mal seguras a fazerem-lhe pender para traz a cabecinha redonda, havia n'ella, ainda morna do leito, um não sei que de encantador e de suave como nas imagens italianas. 
Gostava muito de versos. 
Á noite no tombadilho ou na sala, brilhantemente illuminada a luz eletrica, dizia-os muitas vezes, a pedido nosso, com os olhos cerrados e as mãos cruzadas no regaço. A voz era clara, argentina fresca como um bouquet de rosas orvalhadas... 
Em pouco tempo tratavamo-nos com familiaridade, como se nos conhecessemos ha muito. Entre gente moça, fazem-se depressa as amizades. 
Comviviamos desde manhã até á noite. Liamos no mesmo livro, trocando impressões, procurávamos-nos mutuamente como um refugio contra a monotonia de bordo. 
Uma ocasião principiámos insensivelmente a fallar do passado. 
Regina, sentada de costas para o mar, em frente a mim, contou-me um trecho da sua meninice. Que tinha entrado tarde para o collegio, com treze annos já. "Eu era franzina, debil, nervosa. O medico da familia receiava que eu não chegasse a moça por ser muito esperta e falladora. As minhas perninhas eram assim: (e mostrava-me o dedo minimo muito delgado e branco). Vovó não admittia bulha em casa, soffria muito n'esse tempo de enxaquecas... Ora eu adorava o barulho, o riso, o estrondo. Se não fosses tão fragil, dizia-me muita vez punha-te no collegio, e pensionista. Um dia realisou a ameaça, só por eu ter quebrado na vesperauma grande talha da China, que ella estimava muito. Aquelle acontecimento tão commum foi de uma extraordinaria influencia na minha vida... 
E Regina, segurando-me nas mãos, fixando nos meus os seus grandes olhos escuros, dizia-me: 
– Tenho um tio que é pae de uma menina e de um rapaz, o uilherma. Minha prima casou, era eu ainda pequenita; o irmão, muito mais novo do que ella, está para casar agora. No dia do desastre, quando quebrei a monumentosa talha da China, de feliz memoria, o Guilherme atirou-se lavado em lagrimas aos pés da minha avó, pedindo que me não mandasse para as irmãs de Caridade, que me deixasse em casa. Riram-se todos muito, mas não foi concedida a graça. 
– E Guilherme, perguntei, onde está?
Regina, levemente córada, respondeu: 
– Em Londres...
– Ah! 
Dias depois contando-lhe eu o que me haviam dito a seu respeito "Regina nunca amou", ella desprendeu uma gargalhadinha sonora, e puxando-me pelo braço, apoiando-se n'elle,  principiou a passar commigo, dizendo-me: 
– "A minha amiga ha de presenciar os dias mais felizes da minha vida, estão pertos; deixe-me portanto dizer-lhe toda a verdade. Diz muita gente que eu nunca amei, exactamente porque amei sempre, desde o dia em que se quebrou a grande talha chineza, desde a hora em que eu vi meu pobre Guilherme ajoelhar-se lacrimoso aos pés de minha avó. Tinha elle então quinze annos!... Era tão bonito, e tão meigo! O meu tio principiou a chamar-me sua nóra, e a avó sorria-se quando me via passear pelo braço do primo no jardim. Um dia no carnaval vestiram-me de noiva e a elle de noivo... Tudo aquillo fazia-me impressão... Quando entrei para a provincia; quando voltou, tinha já dezesete annos, foi visitar-me; abraçá-mos, e tratámo-nos por noivos... Elle veiu para Inglaterra, d'onde me escrevia sempre cartas immensas... devia ter voltado o anno passado, mas não poude... voltará, mas... casado.
– E elle já as espera?
– Não! é surpresa. A idéa foi minha... chegâmos a Londres e escrevemos a Mr. Wright, que é nosso correspondentee sabe onde móra Gilherme; elle mesmo ha de leval-o ao hotel sem dizer a que vae. Havemos de arranjar um pretexto. Quero ver o Guilherme me conhece logo á primeira vista!... 
E Regina enthusiasmada, córada, risonha, expandia-se no seu adorado sonho. 
Eis a rasão porque tantos pretendentes lhe ouviram um não, entre duas risadinhas de crystal!

*
* *

Chegámos a Plymouth n'um dia humido, frio. Regina abotoada na sua capa de velludo azul escuro, conchegando os cotovellos aos corpo, alongava a vista por sobre as montanhas baixas, bordadas de fortalezas. O commandante offereceu-lhe um ramo de prime-roses côr de palha, vindas n'esse momento de terra; ella prendeu-o no peito distrahidamente, sem agradecer quasi. Tinha o pensamento alheio a tudo ao approximar-se da sua esperada ventura. 
A baroneza, soffrendo durante toda a viagem, poucas vezes apparecia em cima. Só deitada estou bem, dizia ella, e não sahia do camarim senão raramente. Quando o paquete aportava, ao sentil-o bem firme, é que subia ao tombadilho a refrescar os pulmões e recrear a vista com a observação da terra. Empunhava então o binoculo, pedindo explicações de tudo com uma curiosidade intelligente. 
Chegámos por fim a Londre. Fomos para o mesmo hotel que Regina. Ella collava o rosto aos vidros da carruagem dizendo: quero ver se o vejo... A sua idéa obstinada e fixa era essa – encontral-o. 
Logo que entrou em casa escreveu a Mr. Wright, pedindo que lhe fosse fallar; mas Mr. Wright não apareceu. Depois de alguns dias de impaciente espera tornou a mandar-lhe o seu cartão. Os bilhetes succederam-se durante muito tempo, mas sempre inutilmente.
Não queriam ser as primeiras a visitar o velho correspondente. Tinham feito o seu plano e caprichavam em excutal-o á risca. 
Regina não sahia, temendo que Mr. Wright a procurasse exactamente na occasião, em que estivesse fóra. Por fim, desanimada, consentiu em acompanhar-nos. 
Mas nenhum dos muitos e soberbos espectaculos lhe absorvia o pensamento, girando sempre sobre a mesma idéa.
Andava abstracta, n'uma anciedade febril, por isso, nem os quadros da Galeria Nacional, nem o aspecto animado e sombrio das ruas, nem as representações alegres do Palacio de Crystal, nem  abelleza gradiosissima dos templos, nem a observação dos costumes, dos typos, nada do que seduz, attrahe, prende irresistivelmente o espirito, a desviavaum momento do seu sonho adorado! 
Quando a censuravam, respondia: 
– Eu tenho vivido toda a vida com os olhos fitos n'elle; hei de abandonal-o agora?!
Uma vez entrámos na cathedral de S. Paulo, onde um padre prégava debruçando-se no pulpito e estendendo o braço para os fieis, attentos uns, dormindo outros. 
Regina segurou-me com força a mão, apontando-me um pequeno muito lindo, que offerecia um ramo de tulipas e jacinthos. 
– Parece-se com elle, com o Guilherme, quando quebrei a talha da China! E chegando-se ao menino perguntou-lhe o nome. 
– William, respondeu. 
Regina, commovida, comprou-lhe as flores. Ha coincidencias na vida! disse ella depois, chegando ao rosto alvo e levemente pallido as tulipas vermelhas e os jacinthos côr de rosa. 
A baroneza impacientava-se arrependia-se de ter cedido ao caphicho da neta. 
– Se não era muito mais rasoavel terem mandado avisar o Guilherme e mesmo Mr. Wright? Teriam evitado tantos desgostos, tantos! Dizia ella. 
No fim de quinze longos dias, a baroneza, cançada de escrever ao velho Wright, decidiu-se a ir a sua casa, e encontrou um creado, que lhe explicou d'este moodo a demóra do amigo: 
– Mr. Wright está ha um mez em Richmond, onde quebrou uma perna ao descer de um carro. 
– Mas as minhas cartas!? exclamou a baroneza indignada. 
– Mrs. Wight deu ordem aos famulos que guardassem no escriptorio do marido as cartas e os jornais do correio de Londres, e só lhe mandassem as do estrangeiro... 
Haveria rasões para isso. 
Os medicos recommendaram socego, muito socego, ao doente... 
A baroneza resolveu ir a Richmond, n'esse mesmo instante. 
O creado muito sério, pediu permissão para observar que seria melhor esperar. 
– Mr. Wright chega a Londre amanhã, entregar-lhe-hei todas as cartas, logo que vier ao escriptorio. 
A baroneza, mais animada, voltou ao hotel. 
Regina chegára commigo de Hyde Park, e sentada ao canto do divan, encolhida com frio, esperava impaciente a avó. 
Collocará ao lado o chapeu e as luvas, e entretinha-se machinalmente a tirar e a pôr no dedo o seu annel, um aro fino com uma perola negra muito redonda e grande. 
– Guilherme quando souber que estamos em Londres ha quinze dias, ha de ficar sentido!  murmurava ella, olhando acariciadoramente para o ramo de tulipas e jacynthos, comprado na vespera em S. Paulo, e que estavam alli n'um vaso de pé de nickel, elegante e fino, sobre a meza coberta de albuns, de livros illustrados e de jornais inglezes. 
E lembrava-se, rindo, do espanto do pequenito, quando ella lhe perguntou o nome. 
– Eu devia tel-o levado a um photographo, continuava Regina, animadamente; queria ter um retrato d'elle, assim, com aquelle casaco roto na gola e nas algibeiras, os sapatões maiores do que elle todo, o cabello cahido na testa e o formoso rosto meio erguido como quando me fallou. Guilherme n'aquella edade tinha a mesma expressão, doce e intelligente, e tambem alvo e loiro... 
A baroneza veiu arrancal-a á attitude preguiçosa de gatinha mimada. Logo que a avó appareceu na sua confortavel sala de conversação. Regina levantou-se, n'um movimento rapido, e antes mesmo que a pobre senhora se sentasse, dirigiu-lhe nervosamente um rosario de perguntas: 
– Mr. Wright estava? O que lhe disse? Tem visto Guilherme? Quando vem?
A avó sorria-se áquella impaciencia e calava-se maliciosamente. A neta interpretou mal a mudez da sua velha amiga e correu a affastar o reposteiro, cuidando encontrar atraz d'elle o primo. 
Ninguem na sala immediata! 
– Vem cá, minha doidinha, chamou a baroneza... e contou-lhe tudo o que se passára. 
Regina de pé, com braços pendidos ao longo do corpo, curvava a cabeça para a avó, que levantava os olhos para ella, descrevendo suas risonhas promessas para o dia seguinte. 
– Amanhã, affirmava, Mr. Wright virá jantar comnosco e trará comsigo o nosso Guilherme sob qualquer pretexto. 
– Mas que pretexto, minha avó? 
– Ora, não faltam expedientes a um homem como o amigo Wright... 
E puzeram-se a fazer projectos alegremente. 

*
* *

N'essa noite fomos, como quasi sempre, juntas ao theatro. Eu quanto admiravamos o actor Irving no seu bello trabalho de Mephistopheles, Regina passeava o binoculo pela plateia do Lyceum e pelos camarotes n'uma anciedadefebril. 
Tu não te lembras que estás em Londres, e que isto é um mundo? perguntava-lhe a baroneza, batendo-lhe com o leque uma leve pancadinha no braço. 
Regina sorria-se e voltara para o palco a cabeça. 
– Esta noite não durmo, disse-me ella ao despedir-se, a pensar na minha felicidade de amanhã. 

*
* *

Eram seis horas da tarde quando entrei na sala de Regina. 
Encontrei-a radiante com seu vestido de pellucia branca muito justo e afagado; o cabello escuro, preso no alto com a sua costumada simplicidade; uma perola atarrachada, como um botão. A baroneza fazia paciencias sentada a uma mesa ao lado da janella. 
– Mr. Wright? perguntei-lhes
– Esperamol-o...
– Não póde tardar... replicou suplicando a baroneza, que, juntando as cartas e baralhando-as, perguntavam-me qual tinha sido o meu passeio n'esse dia. 
Demorei-me a fallar-lhe do que víra em Kew Garden, o bello e extensissimo jardim; das suas estufas esplendidas, onde florescem camelias e parasytas, todas as mais finas e exqueisitas plantas tropicaes; do lago, em que veceja a grande flor aquatica Victoria-Regia, natural do Amazonas, das margens do Tamiza, que subiramos n'um vapor; dos suburbios, das cottages da estrada por onde regressáramos á cidade... 
– Eu hoje não sahi, fallava a baroneza; é realmente estupido estar-se um dia todo no hotel, n'uma cidade d'estas; mas esperamos a todo o momento Mr. Wright. Não calcula; a minha Regina passou a noite em claro, nervosa, com febre, a pensar na visita do noivo... é uma verdadeira creança. 
A neta ria-se e beijava n 'uma effusao de alegria as faces morenas e engilhadas da avó. Sou tão feliz! affiançava ella, e ensaiava a maneira de receber o primo. 
– Olhe, ha de ser assim: deixo-o primeiro tomar-lhe a benção e... não, tenha paciencia, minha avósinha, permitta que seja o seu primeiro abraço, sim?... Santo Deus! que de cousas eu tenho para dizer a Guilherme! 
E projectava depois demorar-se em Londres uns mezes, casar-se, ir a Italia... Era o seu desejo ir a Italia...
– Primeiro vamos á Allemanha, observava a baroneza... 
– Pois  sim! iremos á Allemanha, á Russia, á Suissa, a toda parte, comtanto que vá o Guilherme também. 
– Se elle quizer... 
– Oh! se ha de querer!...
A baroneza tentava conter expansões de Regina, mas era trabalho inutil. 
– Quando se tem uma felicidade intensa não se olha convenções, murmurava ella a meia voz, estendendo de novo sobre a mesa de charão as cartas para a paciencia. 
N'este momento um creado trouxe-lhe n'uma salva um cartão; a baroneza depois de o lêr disse para a neta placidamente com um sorriso: 
– É elle, e; voltando-se para o creado, ordenou que fizesse entrar a visita. 
Regina empallideceu, e, levantando-se firmou a mão nas costas do fauteuil junto á mesa. 
Um silencio, o silencio da commoção, substituiu os alegres rumores de ha pouco. 
O creado correu por fim o reposteiro e Mr. Wright atravessou coxeando a sala, indo curvar-se respeitosamente em frente da baroneza. 
Regina, immovel, tinha os olhos muito brilhantes fixos na porta. 
– E o meu neto? interrogou a baroneza, levemente assustada. 
Mr. Wright sorriu. 
Regina olhava para o largo reposteiro côr de fogo. A baroneza com o pescoço estendido, os labios seccos entreabertos, parecia querer ouvir de perto a resposta do inglez, que, sem alterar nem de leve a physionomia, esperava evidentemente qualquer coisa. 
A baroneza, comprehendendo-o, apontou-lhe então uma cadeira, sem animo de dizer mais nada, como ferida de um presentimento. O inglez sentou-se e principiou: 
A senhora baronesa chegou tarde; Guilherme partiu ha, seguramente, vinte dias... 
– Para o Rio?! 
No, madam, para New-York, d'onde era filha a senhora com quem casou. 
– Com quem casou!? perguntou n'um falsete estrangulado a avó de Regina. É impossivel, Mr. Wright! é impossivel!
Regina, immovel, desviára os olhos da porta e fitava-os no rosto avermelhado do inglez, que, sorrindo, continuava: 
– Aquillo foi rapido, elle viu-a n'um dia, declarou-se no outro, pediu-a no immediato áquelle em que se declarou, e casou-se no immediato áquelle em que a pediu. Não se admirem! aqui não é raro acontecerem essas cousas. 
– Mas... e o meu consentimento? 
– Tudo se dispensa quando ha pressa, you know – respondeu o inglez. 
Regina silenciosa ouviu a narração do casamento do primo sem pestanejar... 
Quando Mr. Wright sahiu, a avó voltou-se para ella, e sem proferir uma palavra consoladora, achando impropria toda a expressão, contentou-se com abanar amargamente a cabeça, demorando pesarosa os olhos, vestira como n'um dia de nupcias; o grande dia illuminado pelo ridentissimo sol da felicidade! 
– Em vez de festa, tens luto, pobre creança adorada, dizia o doce olhar da bondosa senhora. 
Regina permanecia altiva e serena como uma estatua. Nem uma lagrima turvára a placidez de seu rosto. Conservou-se  assim durante  alguns segundos, depois atravessou a sala com passo firme, mas vagaroso, como se arrastasse um pesado manto de dores e soffrimentos, e sumiu-se atraz do reposteiro do seu quarto... 

*
* *

No dia seguinte Regina conversou muito á mesa, fincando os dentinhos claros no roast-beef sangrento. A baroneza é que, contra o costume, guardou silencio e não jantou. 
Ao levantarmo-nos, disse-me ella, apontando a neta: 
– Aquillo é uma heroina! 
E nunca mais alludimos, nem de leve, ao desenlace do seu querido sonho! 
Regina acompanhou-nos a Paris, onde procurou divertir-se muito; foi uma bella companheira, amavel, risonha e apreciadora. 
Gostava de sahir, de vêr, de criticar, era realmente incansavel. 
Vivemos reunidas durante o tempo, em que estivemos na grande capital, até que uma manhã despedimo-nos, e talvez para sempre, como acontece geralmente aos viajantes. Ella subiu para o norte, e eu desci para o sul. 

Lisboa, 1886. 


ALMEIDA, Júlia Lopes de. Regina. In: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.




Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves



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Fotografia de Júlia Lopes de Almeida, sem data.