quinta-feira, 25 de julho de 2019

ACTA EST FABULA (1887) - Conto de Júlia Lopes de Almeida, versão transcrita e ortografia atualizada

Além, na escuridão da noite, destaca-se a massa negra do teatro, com os seus óculos luminosos, como os olhos de um lobo muito abertos.

Encostada ao umbral da janela, à vacilante luz das estrelas, a velha atriz, arfando de cansaço, com as mãos caídas sobre o peitoril, contempla silenciosa aquele mostro sombrio onde passara as mais belas noites da sua vida, em que expandira a sua mocidade, o seu grande talento faminto de aplausos, o seu estudo profundo e fatigante, a sua paixão ardente e insaciável, toda a sua alma.

Nesse tempo chamavam-lhe a personificação da arte e da beleza! Deitavam-lhe aos pés as rosas mais frescas e ao colo as pérolas mais finas, entoavam-lhe o nome como um hino, vibrante e altivo! As plateias levantavam-se ao ouvi-la desdobrar a sua voz de sereia... havia um frêmito, que se lhe comunicava magneticamente, na turba ávida, quando no palco ela gemia um soluço ou desprendia uma risada! As ovações sucediam-se, o entusiasmo recrudescia. Diziam-na única!

Vira ajoelharem-se diante de si as notabilidades da época; pisara milhões; enterrara as mãos em pedras preciosas nos seus cofre de filigrana e marfim... e de tudo isso que lhe restava?

O esquecimento!

A mais efêmera gloria e a da cena; brilha, e não deixa ao extinguir-se vestígio da intensidade, em que se consumiu!

A ex-atriz pensava amargamente nisto, confrontando o passado e o presente. Erguera-se do leito a custo, arrastadamente. A inação e a doença tinham–na posto havia muito tempo ali, mas nesse dia trouxera-lhe a criada fiel e antiga um jornal, em que, entre os mais quentes elogios, anunciava- se para a noite o Romeu e Julieta. O noticiarista demorava- se a tecer uma estreia de doiradas felicitações à protagonista, afirmando que: jamais se fizera com tanto sentimento, delicadeza e verdade o papel da amorosa heroína do poeta inglês!

Ah! quanto daria a desgraçada enferma por adquirir, num instante ao menos, a sua longínqua mocidade e entrar soberbamente no palco, nesse papel que lhe tinha pertencido, e eu que espraiara toda a sua meiguice e juventude!

Rolavam- lhe pelas faces engilhadas as lágrimas do desespero.

A inveja mordia-lhe o coração apertando-o atrozmente, e a saudade irremediável abria sobre ela as suas asas abafadiças...

Quis ver as coroas... os bouquets ... os restos dos seus triunfos de outrora ... Segurou sofregamente a grinalda de loiros ... as grandes fitas com letras e franjas de ouro, mas !... As folhas mirradas, e as fitas desmerecidas caíram-lhe das mãos geladas sobre a alcatifa, e ela permaneceu aparentemente inerte!

Á noite conseguiu levantar- se, impulsionada por uma vontade dominadora. Apoiando-se aos moveis caminhou até a janela e abriu com um movimento nervoso a cortina de reps branco.

Que paz! que serenidade, e que beleza! Mas que lhe importava a contemplação do céu estrelado, a linha prateada do mar, o baloiçar das ramas dos jardins, cujo aroma subia em espirais dulcíssimas ?! ...

O que a desgraçada queria ver, eram as paredes exteriores do casarão impassível, onde nessa mesma hora sonolenta e pacificadora, se agitava a multidão sequiosa e bulhenta.

Como há quarenta anos ela dissera amorosamente a cariciosa linguagem de Julieta! Que ternuras na fala, que mistérios de coração adivinhados e transmitidos ao auditório atento! Como sabia pronunciar, em murmúrio quase inaudível, o amo-te, que percorria toda a sala como um suspiro!... Como fazia sentir aos mais indiferentes a magia dos beijos prolongados, silenciosos, no adeus repetido, envolvendo o amante na sua alma apaixonada, sensível, terna, fazendo-o ouvir o canto da calhandra e ver além a linha do horizonte ruborizar-se pouco a pouco...

*

*  *

Porque transição medonha passara essa mulher, que aí estava de pé, apesar de doente, de velha, de frágil, com o olhar alongado, o corpo trêmulo, os cabelos prateados, em desalinho, ondulados pela viração perfumosa da noite!

Ingratos! que se não lembram de mim! Têm outro ídolo sem, nem ao menos, me respeitarem a memória! Oh! Se eu pudesse ainda fazer uma das minhas cenas... uma só que fosse!... E voltava para dentro tentando relembrar um dos seus papeis favoritos. Passavam-lhe em cortejo pelo espirito desordenado as figuras, como visões aladas e intangíveis, de Maria Stuart, de Adriana Lecouvreur, de Izabel de Inglaterra, de Maria Antonieta, de Soror Thereza e de muitas outras, sem que a memória lhe reproduzisse separadamente um trecho, uma fala de qualquer delas! Confundia todas... embaralharam-se-lhe as ideias tumultuosamente e daquele caos surgia, como uma cristalização idealmente pura, a imagem de Julieta. Fora o seu primeiro triunfo; era agora a sua punição, a sua grande e imensurável agonia!

No relógio doirado, sobre o velador, as horas indiferentes iam passando e a velha atriz, sozinha relia o jornal, que amarrotara raivosa de manhã ...

Principia para uma mulher inteligente e nova, a gloriosa carreira do teatro! Ella vai ter tudo que eu tive! tudo! Será amada...Hão de rodeá-la de festas, risos, bulha, flores, joias e cantos. Hão de embriagá-la de vaidades, mas ... e nos lábios frios da velha pairou um sorriso de maldoso contentamento... mas há de chegar-lhe um dia como este, em que se veja esquecida e só!

Subirá talvez ao apogeu da arte, satisfará aos mais exigentes, aos mais requintados... mas o tempo há de passar; virão as rugas, a vacilação nos passos... o enfraquecimento na voz e descerá como eu desci, sentindo arrefecer o entusiasmo em torno e vendo voltarem-lhe as costas enfadados aqueles mesmos, que a tenham passeado no fundo do espetáculo em carro descoberto, iluminado por fogos vermelhos, azuis ou cor de violeta, que é a mais verdadeira, por ser a dos tristes e dos mortos!...

A predição do mal deu novo ânimo àquele corpo sem alento e àquele espirito combalido. O destino encarregar-se-ia da vingança; podia morrer tranquila.

Todavia teve ainda desejo de ver o teatro, de longe, de olhar, olhar para ele mais uma vez...

Levantou-se e apoiando-se nos móveis conseguiu, como antes, aproximar-se da janela.

Passou pelo espelho e parou mirando-se de perto. Lembrou-lhe a cena de Margarida na Dama das Camélias... Oh! como se considerava feliz se a única alteração da sua fisionomia fosse a da pálida criatura do drama de Dumas!

A velhice é o mais aterrador dos males! exclamou ela com rancor, voltando para fora os olhos cansados e vermelhos...
*

*  *

La já tarde a noite e a aragem arrefecera humidamente. Naquela ocasião levantava-se talvez a desfalecida Julieta do seu marmóreo esquife...

À luz aveludada do luar emanava-se o aroma das açucenas, as urnas lácteas dos beija flores adormecidos... A velha atriz aspirou com força o delicioso ambiente dos jardins vizinhos e quedou-se a olhar fixamente para o sombrio vulto do teatro além...

Permaneceu imóvel, com os lábios contraídos, as narinas dilatadas e as mãos caídas sobre o peitoril.

De repente pareceu-lhe sentir, atravessando todo o espaço, como um eco no silêncio augusto, religioso e poético da noite, um grito de entusiasmo, o estrepito influidor das palmas, o levantar de uma multidão ruidosa, delirante e feliz!

Prestou o ouvido atento, curvando-se para fora, e pôs-se numa quietude de pasmo e de espera...

Assim ficou até sumir-se subitamente a luz dos óculos do teatro. Acabado o espetáculo o monstro fechara os olhos.

Então no meio indeciso das sombras distinguiu luzes e cores... ouviu gritos de mocidade aclamando a nova bela atriz, esperança do palco moderno, estrela no céu puro da arte!...

Aqueles sons repercutiam-lhe no peito dolorosamente. Estendeu para a noite os braços magros, engilhados, hirtos, numa maldição de ódio.

O alarido festivo continuava como uma fanfarra brilhante, vitoriosa. Como um canto de paz, segregado em blandícias, volatilizava-se o aroma sutil da baunilha e dos roseirais. A velha atriz blasfemava, estendendo violentamente as mãos emagrecidas pelo espaço afora...

Súbito estremeceu. Aproximavam-se as aclamações, as vozes alegres, frescas, retumbantes, a flutuarem no ar desvairadamente.

A deusa de hoje, passaria sob a janela da antiga deusa! O rodar dos carros e o clarão dos fachos faziam-se já sentir perto.

É o escárnio... é o desprezo, o que me vêm oferecer! Cuidou a Desdêmona de outras eras, a doce encarnação do ideal, como a chamavam então, e, recuando espavorida, numa alucinação angustiosa, as faces empalidecidas, os olhos chamejantes, tentou com um gesto violento cerrar a pesada cortina de reps branco.

Os dedos tatearam o pano do reposteiro em vão e o corpo vacilou-lhe...

Nuns passos de agonia, já sem vista, nem ar, a velha atriz girou nos calcanhares e caiu ao longo do corpo, ao lado das grinaldas emurchecidas, únicos vestígios dos seus passados triunfos...

*

*  *

Lá fora vibravam em ondulações sonoras as vozes da mocidade alegre e ardente.  

No silêncio porém do quarto mortuário não houve quem, como nos teatros antigos, anunciasse o fim daquela tragédia com o – Acta est fabula, – e essa mulher que levantara as multidões ébrias de entusiasmo, caiu no isolamento, ignorada, sem um apoio, sem uma lágrima!

Lisboa, 1887.

ALMEIDA, Júlia Lopes de. Acta est fabula. IN: Traços e Illuminuras. Lisboa: CASTRO IRMÃO, 1887.



Versão transcrita e atualizada pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves - rodrigues.alves@unesp.br

ACTA EST FABULA (1887) - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original


Além, na escuridão da noite, destaca-se a massa negra do theatro, com os seus óculos luminosos, como os olhos de um lobo muito abertos.

Encostada ao humbral da janella, à vacillante luz das estrellas, a velha actriz, arfando de cançaço, com as mãos cahidas sobre o peitoril, contempla silenciosa aquelle mostro sombrio onde passára as mais bellas noites da sua vida, em que expandira a sua mocidade, o seu grande talento faminto de applausos, o seu estudo profundo e fatigante, a sua paixão ardente e insaciável, toda a sua alma.

N’esse tempo chamavam-lhe a personificação da arte e da belleza! Deitavam-lhe aos pés as rosas mais frescas e ao collo as perolas mais finas, entoavam-lhe o nome como um hymno, vibrante e altivo! As plateas levantavam-se ao ouvil-a desdobrar a sua voz de sereia... havia um fremito, que se lhe communicava magneticamente, na turba ávida, quando no palco ella gemia um soluço ou desprendia uma risada! As ovações succediam-se, o enthusiasmo recrudescia. Diziam n’a unica!

Vira ajoelharem-se diante de si as notabilidades da epocha; pisára milhões; enterrára as mãos em pedras preciosas nos seus cofre de filegrana e marfim... e de tudo isso que lhe restava?

O esquecimento!

A mais ephemera gloria e a da scena; brilha, e não deixa ao extinguir-se vestigio da intensidade, em que se consumiu!

A ex-actriz pensava amargamente n’isto, confrontando o passado e o presente. Erguera-se do leito a custo, arrastadamente. A inacção e a doença tinham – n’a posto havia muito tempo alli, mas n’esse dia trouxera-lhe a creada fiel e antiga um jornal, em que, entre os mais quentes elogios, annunciava- se para a noite o Romeu e Julieta. O noticianista demorava- se a tecer uma estreia de doiradas felicitações à protagonista, affirmando que: jamais se fizera com tanto sentimento, delicadeza e verdade o papel da amorosa heroina do poeta inglez!

Ah! quanto daria a desgraçada enferma por adquirir, n’um instante ao menos, a sua longinqua mocidade e entrar soberbamente no palco, n’esse papel que lhe tinha pertencido, e eu que espraiara toda a sua meiguice e juventude!

Rolavam- lhe pelas faces engilhadas as lagrimas do desespero.

A inveja mordia-lhe o coração apertando-o atrozmente, e a saudade irremediavel abria sobre ella as suas azas abafadiças...

Quiz ver as corôas... os bouquets ... os restos dos seus triumphos d’outr’ora ... Segurou sofregamente a grinalda de loiros ... as grandes fitas com lettras e franjas d’oiro, mas !... as folhas mirradas, e as fitas desmerecidas cahiram-lhe das mãos geladas sobre a alcatifa, e ella permaneceu apparentemente inerte!

Á noite conseguiu levantar- se, impulsionada por uma vontade dominadora. Apoiando-se aos moveis caminhou até a janella e abriu com um movimento nervoso a cortina de reps branco.

Que paz! que serenidade, e que belleza! Mas que lhe importava a contemplação do céo estrellado, a linha prateada do mar, o baloiçar das ramas dos jardins, cujo aroma subia em espiraes dulcimas ?! ...

O que a desgraçada queria ver, eram as paredes exteriores do casarão impassivel, onde n’essa mesma hora somnolenta e pacificadora, se agitava a multidão sequiosa e bulhenta.

Como h a quarenta anos ella dissera amorosamente a cariciosa linguagem de Julieta! Que ternuras na fala, que mysterios de coração adivinhados e transmitidos ao auditorio attento! Como sabia pronunciar, em murmurio quase inaudivel, o amo-te, que percorria toda a sala como um suspiro!... Como fazia sentir aos mais indifferentes a magia dos beijos prolongados, silenciosos, no adeus repetido, envolvendo o amante na sua alma apaixonada, sensivel, terna, fazendo-o ouvir o canto da calhandra e vêr além a linha do horizonte ruborisar-se pouco a pouco...

 
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Porque transição medonha passára essa mulher, que ahi estava de pé, apezar de doente, de velha, de fragil, com o olhar alongado, o corpo tremulo, os cabellos prateados, em desalinho, ondulados pela viração perfumosa da noite!

Ingratos! que se não lembram de mim! Teem outro idolo sem, nem ao menos, me respeitarem a memoria! Oh! Se eu podesse ainda fazer uma das minhas scenas... uma só que fosse!... E voltava para dentro tentando relembrar um dos seus papeis favoritos. Passavam-lhe em cortejo pelo espirito desordenado as figuras, como visões aladas e intangiveis, de Maria Stuart, d’Adriana Lecouvreur, de Izabel de Inglaterra, de Maria Antonieta, de Soror Thereza e de muitas outras, sem que a memoria lhe reproduzisse separadamente um trecho, uma fala de qualquer d’ellas! Confundia todas... embaralharam-se-lhe as ideias tumultuosamente e d’aquelle cahos surgia, como uma crystalisação idealmente pura, a imagem de Julieta. Fôra o seu primeiro triumpho; era agora a sua punição, a sua grande e immensuravel agonia!

No relogio doirado, sobre o velador, as horas indifferentes iam passando e a velha actriz, sósinha relia o jornal, que amarrotára raivosa de manhã ...

Principia para uma mulher intelligente e nova, a gloriosa carreira do theatro! Ella vai ter tudo que eu tive! tudo! Será amada... rodeal-a-hão de festas, risos, bulha, flôres, joias e cantos. Embriagal-a-hão de vaidades, mas ... e nos labios frios da velha pairou um sorriso de maldoso contentamento... mas ha de chegar-lhe um dia como este, em que se veja esquecida e só!

Subirá talvez ao apogeu da arte, satisfará aos mais exigentes, aos mais requintados... mas o tempo ha de passar; virão as rugas, a vacillação nos passos... o enfraquecimento na voz e descerá como eu desci, sentindo arrefecer o enthusiasmo em torno e vendo voltarem-lhe as costas enfadados aquelles mesmos, que a tenham passeado no fundo do espetaculo em carro descoberto, illuminado por fogos vermelhos, azues ou côr de violeta, que é a mais verdadeira, por ser a dos tristes e dos mortos!...

A predição do mal deu novo ânimo áquelle corpo seu alento e áquelle espirito combalido. O destino encarregar-se-hia da vingança; podia morrer tranquilla.

Todavia teve ainda desejo de vêr o theatro, de longe, de olhar, olhar para elle mais uma vez...

Levantou-se e apoiando-se nos moveis conseguiu, como d’antes, approximar-se da janella.

Passou pelo espelho e parou mirando-se de perto. Lembrou-lhe a scena de Margarida na Dama das Camelias... Oh! como se considerava feliz se a única alteração da sua physionomia fosse a da pallida creatura do drama de Dumas!

A velhice é o mais aterrador dos males! exclamou ella com rancor, voltando para fóra os olhos cançados e vermelhos...

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*  *

La já tarde a noite e a aragem arrefecera humidamente. N’aquella occasião levantava-se talvez a desfallecida Julieta do seu marmoreo esquife...

Á luz avelludada do luar emanava-se o aroma das açucenas, as urnas lacteas dos beija flôres adormecidos... A velha actriz aspirou com força o delicioso ambiente dos jardins visinhos e quedou-se a olhar fixamente para o sombrio vulto do theatro além...

Permaneceu immovel, com os labios contrahidos, as narinas dilatadas e as mãos cahidas sobre o peitoril.

De repente pareceu-lhe sentir, atravessando todo o espaço, como um echo no silencio augusto, religioso e poético da noite, um grito de enthusiasmo, o estrepito influidor das palmas, o levantar d’uma multidão ruidosa, delirante e feliz!

Prestou o ouvido attento, curvando-se para fóra, e poz-se n’uma quietude de pasmo e de espera...

Assim ficou até sumir-se subitamente a luz dos oculos do theatro. Acabado o espetaculo o monstro fechára os olhos.

Então no meio indeciso das sombras distinguiu luzes e côres... ouviu gritos de mocidade acclamando a nova bella actriz, esperança do palco moderno, estrella no ceu puro da arte!...

Aquelles sons repercutiam-lhe no peito dolorosamente. Estendeu para a noite os braços magros, engilhados, hirtos, n’uma maldição de odio.

O alarido festivo continuava como uma fanfarra brilhante, victoriosa. Como um canto de paz, segregado em blandicias, volatilizava-se o aroma subtil da baunilha e dos roseiraes. A velha actriz blasphemava, estendendo violentamente as mãos emagrecidas pelo espaço fóra...

Subito estremeceu. Approximavam-se as acclamações, as vozes alegres, frescas, retumbantes, a fluctuarem no ar desvairadamente.

A deusa de hoje, passaria sob a janella da antiga deusa! O rodar dos carros e o clarão dos fachos faziam-se já sentir perto.

É o escarneo... é o desprezo, o que me vêm offerecer! Cuidou a Desdemona de outras éras, a doce encarnação do ideal, como a chamavam então, e, recuando espavorida, n’uma hallucinação angustiosa, as faces empallidecidas, os olhos chamejantes, tentou com um gesto violento cerrar a pesada cortina de reps branco.

Os dedos tactearam o panno do reposteiro em vão e o corpo vacillou-lhe...

N’uns passos de agonia, já sem vista, nem ar, a velha actriz girou nos calcanhares e cahiu ao longo do corpo, ao lado das grinaldas emmurchecidas, unicos vestigios dos seus passados triumphos...

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*  *

Lá fóra vibravam em ondulações sonóras as vozes da mocidade alegre e ardente.

No silencio porém do quarto mortuario não houve quem, como nos theatros antigos, annunciasse o fim d’aquella tragedia com o – Acta est fabula, – e essa mulher que levantára as multidões ebrias de enthusiasmo, cahiu no isolamento, ignorada, sem um apoio, sem uma lagrima!

Lisboa, 1887.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Acta est fabula. IN: Traços e Illuminuras.Lisboa: CASTRO IRMÃO, 1887.



Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves

Júlia Lopes de Almeida

Júlia Lopes de Almeida tem se revelado, infelizmente de maneira tardia, um incrível nome da literatura brasileira, propositalmente abafado pelo machismo. Atualmente, seu nome, história e obra estão reaparecendo e sendo reapresentados aos brasileiros e mesmo aos estudiosos de literatura. 
Seu romance A falência, do início do século XX, passou a integrar a lista de leituras obrigatórias para o vestibular Unicamp a partir de 2020. 

Em breve, nos dedicaremos a trazer resenhas e informações sobre sua história e obra ainda pouco estudada, tal material compõe os resultados dos estudos da Professora Maria Cláudia Rodrigues Alves. 

Enquanto isso, disponibilizamos alguns links ricos em informações sobre Júlia de Almeida e sua literatura: 


Boas leituras a todos!

Retrato de Júlia Lopes de Almeida, pintado 
por Berthe Worms, em 1895, e oferecido pela retratista à escritora. 
Mantido por Claudio Lopes de Almeida, neto da escritora