quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A ESCRAVA, (1887) - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original

A ESCRAVA 
A LUISA DA MOTTA CARDOSO 

Tinhamos partido de Campinas, a tranquilla cidade da provincia de S. Paulo, ás nove horas da manhã. O dia estava frio; um bello dia de Junho, tranparente e doirado. Na estrada as rodas dos trolys levantavam uma nuvem de pó avermelhado e fino; sentia-se o aroma sadio das mattas aos lados. Quando chegámos á fazenda — Monte-Belo — ouvimos gritos de alegria. É que ao bater o lá no alto a cancella do pasto, cercado de profundos vallos, estendendo-se como um enorme tapete de verdura liso e fofo, a familia da casa correu ao alpendre, recebendo amavelmente os hospedes. 
Entrámos no grande terreiro ao som das vivas creanças e do latido dos cães. 
Achávamo-nos em pleno campo paulista. Acabados os primeiros cumprimentos, fomos reparar as nonas toilettes. O meu quarto, um pequeno quarto branco, com um lavatorio de madeira a um canto, uma cortina de chita salpicada de roxo a tapar os cabides fixos na parede, mesa de cabeceira coberta com crochets e leito á antiga, dito, alto, vestido de novo, tinha uma janella. Divisava-se d'alli um trecho da paysagem que nos rodeava. Lá em baixo o lago, grande, oval, como uma chapa de metal palido sobre a pellucia verde do gramado em volta. N'agua uns gansos alvos e uns marrecos bravos pennas furta côres e brilhantes. Alem os campos da pastagem, semeados de animaes. Ao fundo a linhaescura da floresta. 
Os negros andavam risonhos de um lado para o outro cantarolando e rindo. Era o seu maior dia de festa, a vespera de S. João. 
A dona da casa passou o dia a fazer dôce para a ceia dos escravos; a filha mais velha a recortar papeis de côres para o capacete de um d'elles, que devia apparecer de general e para a corôa de outro que havia de ser o rei. 
Deixando-as n'essa occupação fui com algumas amigas passear a pé. Descemos uma collina sombreada de limeiras e paámos defronte do moinho em descanço. 
A agua passava em borbotões por entre os raios negros da grande roda fixa e silenciosa. Entrámos; a nó estava pousada no fundo. Uma quietação pasmosa em tudo! Démos volta e subimos pelo laranjal passando pela grande casa da machina, fechada e triste. Atravessámos o extensissimo terreiro de café, cimentado e varrido escrupulosamente e descemos do lado opposto ao moinho, indo ter á casa da Rosalia, a preta velha, guarda do gallinheiro alli ao pé. 
Ella cosia sentada ao sol, contando historias a umas creanças pretas tambem. Ao ver-nos levantou-se e estendendo-nos as mãos postas murmurou louvado da estylo. 
— Olha Rosalia, disse a filha maes nova do dono da fazenda, que nos acompanhava, vá para casa, não fique aqui em baixo, ouviu? 
Rosalia curvou tristemente a cabeça e respondeu contrafeita: nhá, sim! 
É singular! pensava eu commigo, a velha mostra preferir ficar aqui, n'este isolamento! 
Seguimos por uma grande rua de bambús cerrados como enormes paredes de verdura e fomos ter á horta. No chão estendia-se uma renda de sombras das follhas das parreiras e das latadas de maracujá. 
As ramas vaporosas dos espargos ondulavam brandamente. Os grandes repolhos de um verde azulado erguiam as cabeças redondas e duras d'entre as largas folhas arroxadas das beterrabas. Pendiam carregadas as hastes dos guandos. Da horta passámos ao jardim, atravessando pelas ruas de jasmins do Cabo e pelo canteros gramados, onde se destacavam alegremente as grandes rosas vermelhas e os bouquets azues das hortencias. Entrámos de novo em casa, e uma hora depois sentava-mos á mesa do jantar. 
  Quando nos levantámos era quasi noite. Os negros dançavam lá fora acompanhados pelas pancadas surdas do batuque. No terraço, ao fundo, estava já posta a sua grande ceia. Cessou então a dança e começaram os brindes. Os arrojados romperam nos mais bestialogicos discursos que imaginar possam. Os menos afoitos e mais delicados partim á faca, espetando com o garfo, o pão no prato. Outros, mais philosophos, comiam vorazmente sem se perturbarem com aquelle scenario tão extraordinario  para elle, e ainda outros, depois, depois terem saboreado doces d'ovos, de leite ou de batata em calices, acceitavam umas empadas de gallinha ou um boccado de leitão. Alguns recitavam versos, e faziam saúdes cantadas; raros eram os que se deixavam em silencio. 
Mas onde estava a Rosalia, que por ninguem foi vista? 
Acabou-se a ceia, e sahiram todos sem pensar na velha! Voltaram para a dança ao ar livre, illuminada pelas labaredas avermelhadas das fogueiras, onde as creanças assavam canas e carás. Os parentes e convidados da casa jogavam e dançavam nas salas. Eu preferi debruçar-me na grade de madeira da varanda fóra, apezar do frio, a ver dançar os negros. Elles possessos, cantando n'uma toada melancholica, executando as mais extravagantes posições, desenhavam-se como sombras phansticas no clarão avermelhado das luzes. As mucamas requebravam-se, inclinando sobre o hombro a cabeça bem penteada de carapinha fota, enfeitada de borboletas e de estrellas de aço, e levantando de vez em quando os braços arqueadamente. Depois sahiam os pagens, dançando com uns passos miudinhos, de calcanhares quasi unidos, recuando, avançando e torcendo, para acabar, o corpo n'uma volta rapida; os outros paravam fazendo circo e rompiam depois em saltos e cabriolas. 
E são homens! Santo Deus! pensava eu contemplando esses vultos negros, nervosos, que se crusavam nas mais absurdas reviravoltas, com uma alegria brutal. 
Cançada, retirei-me para dentro. Passei pelo corredor e ia atravessando a saleta de estudo das meninas, a mais solitaria, quando notei a um canto uma rede vazia. Deitei-me n'ella. 
A pouco e pouco os olhos foram-se habituando á meia claridade d'esse quarto silencioso. De repente ouvi um suspiro debil como o de uma creança adormecida, voltei a cabeça e vi sentada encolhidamente no chão  uma negra velha, a Rosalia. 
Perguntei-lhe porque não se reunia aos seus, dançando ou vendo danças os outros. 
Ella approximou-se e disse com voz chorosa: 
Ah! Sinhásinha, eu não posso ver o Samba... 
Mas porque? 
Os olhinhos avermelhados da negra brilharam na escuridão. Ouvi-lhe a respiração offegante. Por fim contou-me ao seu modo, n'aquella linguagem meio africana, impossivel de reproduzir, e sem phrases de estylo, n'uma simplicidade commovente, que me ia directamente ao coração, que seu unico filho, o Vicente, que tinha sido a flor dos pagens da fazenda e que dançava como ninguem... morrêra-lhe, e de que morte!... Desde então fazia-lhe mal, a ella, ouvir cantar e ver dançar os negros... 
Um dia acompanhára Vicente o senhora á cidade, e de volta para casa partiu da floresta um  tiro, que o deitou do cavallo abaixo, o assassino errara o alvo. O dono da fazenda chegou pallido e a todo galope a Monte-Bello, dando ordem para que fossem buscar o cadaver do pagem... 
Rosalia, com os braços no ar e a lamentar-se aos gritos, atravessou correndo os campos indo encontrar o seu filho estirado na estrada; já o não ouviu respirar, estava morto! Os parceiros vieram e deitaram-n'o n'uma rede. A mãe caminhava atraz, pisando o sangue que se se estendia como rastro cahindo gotta a gotta... do corpo de Vicente. 
Rosalia calou-se e eu parecia-me vel-a n'essa tarde de outomno, bella e ligeiramente fria, de uma claridade suave e doce, a seguir sem apoio o cadaver do filho, pisando descalça a longa fita vermelha de seu proprio sangue! 
O batuque continuava lá fora com o mesmo ardor, sentia-se o crepitar das fogueiras, o alegre rumor das vozes... Rosalia levantou-se e poz-se a embalar-me a rede até que adormeci... 

Lisboa, 1887.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Regina. In: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.



Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves



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