domingo, 27 de outubro de 2019

REGINA, (1886) - Conto de Júlia Lopes de Almeida - original



Encontrei-a a bordo do Arauva, o grande paquete escocez, que me devia trazer do Rio de Janeiro a Inglaterra. 
Na vespera tinham-me dito: 
– Vae ter uma bella companheira de viagem, a Regina Camargo. 
– Sim?! exlamou a meu lado o dr. Figueiredo muito attonito; a Regina vae! e com quem?
– Com a avó. 
– Devéras!? 
E na physionomia de Figueiredo tranparecia o desgosto. 
– A Regina vae! a Regina vae! repetia elle opprimido; mas de repente: 
– É impossivel ! a baroneza está velha e não terá o mau gosto de viajar só com a neta...
– Porque não? a baroneza foi sempre muito independente... 
– Pois sim, mas... quer-me parecer que está enganado. 
– Affianço-lhe, doutor. Vi os passaportes no escriptorio da agencia. 
– Mas quem é Regina? perguntei já mordida de curiosidade. 
– É a menina mais elegante das Laranjeiras, disse o Figueiredo. 
– E a mais rica, observou o outro. 
– E a mais bonita, affirmou o primeiro. 
– E a mais instruida, concluiu o segundo. 
E davam-me os parabens. Na verade não podia haver melhor companhia n'uma longa e monotona viagem por mar, diziam todos. A Regina é talentosa, graciosissima, tem muito espirito e é amavel. Canta como um canario, e ri como uma criança... adoravel a Regina! Verá! 
– Eu conheci-a em Petropolis, disse o doutor, ha dois verões. Tinha saido do collegio havia pouco; contudo parecia ter já longa pratica da sociedade. Vestia bem... 
– Tem muito gosto, tem interrompeu o outro. 
Dançava perfeitamente, representava comedia de salão em graça fina, leve, e uma ironia subtil, deliciosa! A baroneza retirou-se antes da chegada do inverno para o Rio, cançadade ouvir pedir a neta em casamento. Fez uma esplendida entrada no mundo social aquella pequena... Antes ninguem ouvira fallar n'ella. Esteve nas Irmãs de Caridade até aos dezesete annos! Dizem que a avó não queria perturbar o socego do seu silencioso viver chamando para junto de si aquelle formoso diabrete... 
– Admira-me o estar ainda solteira, objectava um d'elles.
– Não lhe faltam noivos, mas... não tem querido. A avó a cada pedido que lhe fazem ri-se e responde; se ella quiser... pergunte-lh'o meu amigo! 
O amigo, ou não pergunta percebendo a malicia, ou, se cahe na asneira de o fazer, ouve um não, entre duas risadinhas de crystal... 
– É uma rapariga original; nunca se apaixonou... 
– A primeira vez que entrei em sua casa, continou o doutor, foi o anno passado; apresentou-me um amigo familia o Araujo de Andrade, que... 
Sei, sei... 
– Bem, pois foi elle quem me levou lá. Antes de entrar no jardim parei um momento indeciso, acanhado como um rapaz de quinze annos! Atravez da grade, mal enleada por uma trepadeira de perfumosas flores côr de leite, vi as janellas abertas abertas do rez-dechasée iluminadas, e uma sombras, que se moviam lá dentro por detraz das cortinas de renda e que não pude distinguir bem. Arrastado pelo meu bom Araujo, entrei. Passá-mos na verdade uma encantadora noite. Regina, mergulhada n'um fôfo divan escarlate de arabescos vivos, vestida de escuro, destacava-se magestosa d'aquelle fundo de tecido arabe. N'uma cadeira de balanço austriaca, em frente ao piano, a baroneza, recostada indolentemente, abonava-se com uma ventarola de palha, onde pendêra um ramo de ipomêas côr de sangue, frescas e brilhantes. N'uma mesa a um canto conversavam alegremente umas meninas da visinhança, amigas de Regina. Pareceu-me estar mesmo vendo agora a sala... 
O Araujo tinha intimidade alli e apresentou-me com phrases lisongeiras. Conversámos muito. A baroneza, que estivera longo tempo silenciosa, piscando os olhinhos myopes, voltou-se para o meu amigo (lembro-me tão bem...) e perguntou-lhe o que fizera da sua esmeralda que era o encanto de toda gente, e que elle não trazia no dedo havia já uns poucos dias... Um áparte de Regina fez-me perder a resposta do Araujo. Quando voltei a ouvil-os, dizia a baroneza: 
– Nós as brazileiras temos a mania das flores e das pedras. Eu por mim, confesso, sou grande admiradora de uma e de outras. Desde creança professo o culto d'essa religião. O barão apaixonou-se por me ver sempre com um ramo de flores... e ainda hoje, apesar de velha, vejam, dizia, ella apontando para as ipomêas da ventarola, não deixo de usal-as. Foi por causa das flores e das pedras que aliviei meu luto de viuva, aliás tel-o-hia conservado até hoje; mas abandonar no fundo escuro de uma gaveta umas saphiras, que estão mesmo a desafiar a luz, e deixar morrer nas roseiras umas flores esplendidas e dignas de uma viagem á rua do Ouvidor, seria crueldade indigna de uma mulher de gosto; não acha? 
O Araujo dizia que sim, e que elle já notáva o que a baroneza acabava de dizer, que nenhuma mulher mais do que a brasileira adora as scintillações das pedrarias e a graça gentilissima das flores... 
Regina interrompeu a conversa com uma romanza de Denza. 
Passei umas horas realmente bellas. Dias depois voltei, e no fim de um mez... dizia-me a baroneza, concluindo uma conferencia que tivera commigo a sós: 
Se ella quizer... pergunte-lh'o meu amigo.
Pois saibam que fui sufficientemente tolo para lh'o perguntar, e por isso ouvi, como muitos outros, antes de mim, um – não – entre duas risadinhas de crystal... 
Não voltei a casa de Regina, cortei, familia; vejo-a raras vezes, mas tenho pena que vá para a Europa. 
Emfim, por um lado folgo, porque d'esse modo terá a minha querida amiga, disse voltando-se para mim, uma bella companheira de viagem. 
No outro dia embarquei ao entardecer. Uma bella tarde de março aquella, quente e brilhante. Entregue n'essa occasião á tristeza da despedida, não reparei em Regina, que conversava rindo com diversos, que a cercavam lisongeando-a muito. 
Ás 8 horas dirigiram-se para terra os amigos, que tinham vindo acompanhar ao bota-fora os viajantes. Os escaleres cortavam a agua na direcção da terra; destacavam-se na sombra, como azas candidas agitando-se tremulas, os lenços em repetidos adeuses... Fomos deixando de distinguir esses signaes, a que do alto da amurada correspondiamos. A pouco e pouco, como figuras indecisas, perderam-se de todo na escuridade! O olhar então se seguiu, seguiu a luz avermelhada da lanterna da prôa do escaler, que se ia affastando, esmorecendo na distancia, extinguindo-se como a luz do olhar do moribundo, perdendo-se ao longe, como uma saudosa estrella... 

*
* *

No dia seguinte subi para o tombadilho. 
O sol mordia a superficie quebrada do mar, que faiscava luminosamente. Um ar livre, puro, forte enfunava as grandes velas do Arawa.
Não ha nada mais salutar, mais purificador para as organisações doentias do que essas esplendidas manhãs de bordo. 
Os pulmões dilatam-se áquelle ar queima a gente. A vista estende-se pelo azul limpido a fóra, por todo o enorme globo transparente e brilhante. 
A ideia do perigo de nos acharmos isolados n'aquella vastidão , como que lhe duplica o encanto... 
Bello dia aquelle; as inglezas admiravam-n'o, trocando as suas exclamações gutturaes. Os passageiros vindos da Australia e da Nova Zelandia observavam attentamente os chegados na vespera do Rio. 
Regina principalmente attrahia a attenção de quasi todos. Passeava de um a outro extremo conversando em inglez com o capitão, que a seguia ao lado, curvando para ella a cabeça e alisando com a mão direita a barba muito loira. 
Ella ia olhando para a frente, para o espaço, sem reparar em ninguem, só quando o commandante fallava, é que volvia o rosto, demorando n'elle os seus grandes olhos serenos e escuros, muito escuros. 
Cançada naturalmente do passeio, Regina sentou-se n'uma cadeira de lona, despedindo-se com um gesto amavel do commandante, que minutos depois voltou, trasendo um livro; ella riu-se, trocou ainda algumas palavras, e principiou a ler logo que ele desceu. 
Um inglez a meu lado occupava-se então em desenhar Regina, n'uma folha da sua carteira; detinha n'ella o olhar, e retirava-o para o papel, onde com verdade e nitidez reproduziu n'uma miniatura graciosissima a sua figura gentil. Ella alli estava tal e qual, com o seu airoso vestido de xadrez muito simples e distincto; esbelta, fina, elegante; recostada na cadeira, mostrando sem affectação os pésinhos estendidos, bem feitos, calçados á ingleza, sapato de pellica de pequeno salto, atado com um grande laço no tornozello sobre a meia de seda preta. 
O inglez, notando a minha curiosidade, entregou-me aqui o retrato de todos os passageiros... é uma lembrança de viagem como outra qualquer e mostrava-me: olhe: aqui está o reverendo Mr. Cumbs, aquelle que lá vem... 
– Perfeito! Mr. Cumbs... baixo, grosso, todo vestido de preto, com um chapeu de feltro de abas largas, a sombrear-lhe o rosto sem barba. Aqui esta, é Miss Moore... original!... cara de menina em corpo de rapaz, vestido escorrido muito curto; gorro de velludo mal assente sobre o cabello loiro-cinzento. Aqui, esta, é Miss Cumbs, irmã do reverendo; muito alta, muito magra, chapeu coberto de cambraia branca, e vestida com uma singeleza atroz... 
– E este?
– É o médico de bordo, homem alto, gordo, corado, todo vestido de branco inclusive os sapatos. 
E passou-me deante dos olhos a galeria pittoresca dos passageiros todos. Agora era uma pequena, filha de Mrs. Russel, Eva, com o seu annelado cabello côr de fogo, olhos intelligentes, bibe ellegantemente posto; d'ahi a nada, um creado, o George, correcto, attencioso, bemperfilado, com o guardanapo pendente do braço... mais adeante, tres raparigas, irmãs de um negociante australiano, e australianas tambem, muito parecidas, e tanto que elle, não as distinguindo, confundia-lhes os nomes... 
Ia principiar a explicação d'um novo personagem..  quando o interrompeu o metalico tam-tam, chamando para o lunch
O inglez, cortejando-me á pressa, fechou a sua grande carteira e desceu rapidamente a escada. 
Uns interromperam a leitura, outros a conversa, e ainda outros o somno. 
Desci por ultimo a escada atapetada, com frisos de metal amarello e corrimão de madeira polida. 
Na grande sala de jantar tiniam os talheres dos mais impacientes, alguns já iam mesmos pelas altteras da fructa. 
O meu lugar á mesa era ao lado do de Regina. Entabolámos ahi conversação sobre não sei que assumpto futil. 
A avó enjoára e nçao tinha animo para levantar a cabeça da almofada, não podia sahir do camarim. 
Em frente de nós, um sujeito magro, de longa barba grisalha, accumulava no prato gelatinas, gomos de laranja mal descascada, arroz, uma arroz muito branco, coroado de doce de ameixas, que não deixava de apparecer nunca, e que tinha n'elle um grande apreciador. 
Ao lado d'esse intoleravel gastronomo, sentava-se em seu patricio, um verdadeiro John Bull, a quem pela seriedade inalteravel deram a bordo o nome de – o sinistro. 
Á esquerda de Regina ficava o logar vazio da avó, á sua direita eu; não tinha portanto, outra companheira a essa hora; e sem reservas, n'uma maneira franca e grausa, dirigiu-me a palavra. Conversámos largamente. Quando subimos, passeámos juntas no convéz e jogámos uma partida de malha. 
Não me tinham exaggerado as suas qualidades. Regina era adoravel, bonita, intelligente, affavel, despretenciosa, chic. 
Chic! é realmente a melhor classificação – vestia-se bem, fallava com graça. 
De manhã cedo, quando atravessáva o corredor para o quarto de banho, envolta nas largas dobras do seu peiggnoir forrado de seda, com as tranças negas mal seguras a fazerem-lhe pender para traz a cabecinha redonda, havia n'ella, ainda morna do leito, um não sei que de encantador e de suave como nas imagens italianas. 
Gostava muito de versos. 
Á noite no tombadilho ou na sala, brilhantemente illuminada a luz eletrica, dizia-os muitas vezes, a pedido nosso, com os olhos cerrados e as mãos cruzadas no regaço. A voz era clara, argentina fresca como um bouquet de rosas orvalhadas... 
Em pouco tempo tratavamo-nos com familiaridade, como se nos conhecessemos ha muito. Entre gente moça, fazem-se depressa as amizades. 
Comviviamos desde manhã até á noite. Liamos no mesmo livro, trocando impressões, procurávamos-nos mutuamente como um refugio contra a monotonia de bordo. 
Uma ocasião principiámos insensivelmente a fallar do passado. 
Regina, sentada de costas para o mar, em frente a mim, contou-me um trecho da sua meninice. Que tinha entrado tarde para o collegio, com treze annos já. "Eu era franzina, debil, nervosa. O medico da familia receiava que eu não chegasse a moça por ser muito esperta e falladora. As minhas perninhas eram assim: (e mostrava-me o dedo minimo muito delgado e branco). Vovó não admittia bulha em casa, soffria muito n'esse tempo de enxaquecas... Ora eu adorava o barulho, o riso, o estrondo. Se não fosses tão fragil, dizia-me muita vez punha-te no collegio, e pensionista. Um dia realisou a ameaça, só por eu ter quebrado na vesperauma grande talha da China, que ella estimava muito. Aquelle acontecimento tão commum foi de uma extraordinaria influencia na minha vida... 
E Regina, segurando-me nas mãos, fixando nos meus os seus grandes olhos escuros, dizia-me: 
– Tenho um tio que é pae de uma menina e de um rapaz, o uilherma. Minha prima casou, era eu ainda pequenita; o irmão, muito mais novo do que ella, está para casar agora. No dia do desastre, quando quebrei a monumentosa talha da China, de feliz memoria, o Guilherme atirou-se lavado em lagrimas aos pés da minha avó, pedindo que me não mandasse para as irmãs de Caridade, que me deixasse em casa. Riram-se todos muito, mas não foi concedida a graça. 
– E Guilherme, perguntei, onde está?
Regina, levemente córada, respondeu: 
– Em Londres...
– Ah! 
Dias depois contando-lhe eu o que me haviam dito a seu respeito "Regina nunca amou", ella desprendeu uma gargalhadinha sonora, e puxando-me pelo braço, apoiando-se n'elle,  principiou a passar commigo, dizendo-me: 
– "A minha amiga ha de presenciar os dias mais felizes da minha vida, estão pertos; deixe-me portanto dizer-lhe toda a verdade. Diz muita gente que eu nunca amei, exactamente porque amei sempre, desde o dia em que se quebrou a grande talha chineza, desde a hora em que eu vi meu pobre Guilherme ajoelhar-se lacrimoso aos pés de minha avó. Tinha elle então quinze annos!... Era tão bonito, e tão meigo! O meu tio principiou a chamar-me sua nóra, e a avó sorria-se quando me via passear pelo braço do primo no jardim. Um dia no carnaval vestiram-me de noiva e a elle de noivo... Tudo aquillo fazia-me impressão... Quando entrei para a provincia; quando voltou, tinha já dezesete annos, foi visitar-me; abraçá-mos, e tratámo-nos por noivos... Elle veiu para Inglaterra, d'onde me escrevia sempre cartas immensas... devia ter voltado o anno passado, mas não poude... voltará, mas... casado.
– E elle já as espera?
– Não! é surpresa. A idéa foi minha... chegâmos a Londres e escrevemos a Mr. Wright, que é nosso correspondentee sabe onde móra Gilherme; elle mesmo ha de leval-o ao hotel sem dizer a que vae. Havemos de arranjar um pretexto. Quero ver o Guilherme me conhece logo á primeira vista!... 
E Regina enthusiasmada, córada, risonha, expandia-se no seu adorado sonho. 
Eis a rasão porque tantos pretendentes lhe ouviram um não, entre duas risadinhas de crystal!

*
* *

Chegámos a Plymouth n'um dia humido, frio. Regina abotoada na sua capa de velludo azul escuro, conchegando os cotovellos aos corpo, alongava a vista por sobre as montanhas baixas, bordadas de fortalezas. O commandante offereceu-lhe um ramo de prime-roses côr de palha, vindas n'esse momento de terra; ella prendeu-o no peito distrahidamente, sem agradecer quasi. Tinha o pensamento alheio a tudo ao approximar-se da sua esperada ventura. 
A baroneza, soffrendo durante toda a viagem, poucas vezes apparecia em cima. Só deitada estou bem, dizia ella, e não sahia do camarim senão raramente. Quando o paquete aportava, ao sentil-o bem firme, é que subia ao tombadilho a refrescar os pulmões e recrear a vista com a observação da terra. Empunhava então o binoculo, pedindo explicações de tudo com uma curiosidade intelligente. 
Chegámos por fim a Londre. Fomos para o mesmo hotel que Regina. Ella collava o rosto aos vidros da carruagem dizendo: quero ver se o vejo... A sua idéa obstinada e fixa era essa – encontral-o. 
Logo que entrou em casa escreveu a Mr. Wright, pedindo que lhe fosse fallar; mas Mr. Wright não apareceu. Depois de alguns dias de impaciente espera tornou a mandar-lhe o seu cartão. Os bilhetes succederam-se durante muito tempo, mas sempre inutilmente.
Não queriam ser as primeiras a visitar o velho correspondente. Tinham feito o seu plano e caprichavam em excutal-o á risca. 
Regina não sahia, temendo que Mr. Wright a procurasse exactamente na occasião, em que estivesse fóra. Por fim, desanimada, consentiu em acompanhar-nos. 
Mas nenhum dos muitos e soberbos espectaculos lhe absorvia o pensamento, girando sempre sobre a mesma idéa.
Andava abstracta, n'uma anciedade febril, por isso, nem os quadros da Galeria Nacional, nem o aspecto animado e sombrio das ruas, nem as representações alegres do Palacio de Crystal, nem  abelleza gradiosissima dos templos, nem a observação dos costumes, dos typos, nada do que seduz, attrahe, prende irresistivelmente o espirito, a desviavaum momento do seu sonho adorado! 
Quando a censuravam, respondia: 
– Eu tenho vivido toda a vida com os olhos fitos n'elle; hei de abandonal-o agora?!
Uma vez entrámos na cathedral de S. Paulo, onde um padre prégava debruçando-se no pulpito e estendendo o braço para os fieis, attentos uns, dormindo outros. 
Regina segurou-me com força a mão, apontando-me um pequeno muito lindo, que offerecia um ramo de tulipas e jacinthos. 
– Parece-se com elle, com o Guilherme, quando quebrei a talha da China! E chegando-se ao menino perguntou-lhe o nome. 
– William, respondeu. 
Regina, commovida, comprou-lhe as flores. Ha coincidencias na vida! disse ella depois, chegando ao rosto alvo e levemente pallido as tulipas vermelhas e os jacinthos côr de rosa. 
A baroneza impacientava-se arrependia-se de ter cedido ao caphicho da neta. 
– Se não era muito mais rasoavel terem mandado avisar o Guilherme e mesmo Mr. Wright? Teriam evitado tantos desgostos, tantos! Dizia ella. 
No fim de quinze longos dias, a baroneza, cançada de escrever ao velho Wright, decidiu-se a ir a sua casa, e encontrou um creado, que lhe explicou d'este moodo a demóra do amigo: 
– Mr. Wright está ha um mez em Richmond, onde quebrou uma perna ao descer de um carro. 
– Mas as minhas cartas!? exclamou a baroneza indignada. 
– Mrs. Wight deu ordem aos famulos que guardassem no escriptorio do marido as cartas e os jornais do correio de Londres, e só lhe mandassem as do estrangeiro... 
Haveria rasões para isso. 
Os medicos recommendaram socego, muito socego, ao doente... 
A baroneza resolveu ir a Richmond, n'esse mesmo instante. 
O creado muito sério, pediu permissão para observar que seria melhor esperar. 
– Mr. Wright chega a Londre amanhã, entregar-lhe-hei todas as cartas, logo que vier ao escriptorio. 
A baroneza, mais animada, voltou ao hotel. 
Regina chegára commigo de Hyde Park, e sentada ao canto do divan, encolhida com frio, esperava impaciente a avó. 
Collocará ao lado o chapeu e as luvas, e entretinha-se machinalmente a tirar e a pôr no dedo o seu annel, um aro fino com uma perola negra muito redonda e grande. 
– Guilherme quando souber que estamos em Londres ha quinze dias, ha de ficar sentido!  murmurava ella, olhando acariciadoramente para o ramo de tulipas e jacynthos, comprado na vespera em S. Paulo, e que estavam alli n'um vaso de pé de nickel, elegante e fino, sobre a meza coberta de albuns, de livros illustrados e de jornais inglezes. 
E lembrava-se, rindo, do espanto do pequenito, quando ella lhe perguntou o nome. 
– Eu devia tel-o levado a um photographo, continuava Regina, animadamente; queria ter um retrato d'elle, assim, com aquelle casaco roto na gola e nas algibeiras, os sapatões maiores do que elle todo, o cabello cahido na testa e o formoso rosto meio erguido como quando me fallou. Guilherme n'aquella edade tinha a mesma expressão, doce e intelligente, e tambem alvo e loiro... 
A baroneza veiu arrancal-a á attitude preguiçosa de gatinha mimada. Logo que a avó appareceu na sua confortavel sala de conversação. Regina levantou-se, n'um movimento rapido, e antes mesmo que a pobre senhora se sentasse, dirigiu-lhe nervosamente um rosario de perguntas: 
– Mr. Wright estava? O que lhe disse? Tem visto Guilherme? Quando vem?
A avó sorria-se áquella impaciencia e calava-se maliciosamente. A neta interpretou mal a mudez da sua velha amiga e correu a affastar o reposteiro, cuidando encontrar atraz d'elle o primo. 
Ninguem na sala immediata! 
– Vem cá, minha doidinha, chamou a baroneza... e contou-lhe tudo o que se passára. 
Regina de pé, com braços pendidos ao longo do corpo, curvava a cabeça para a avó, que levantava os olhos para ella, descrevendo suas risonhas promessas para o dia seguinte. 
– Amanhã, affirmava, Mr. Wright virá jantar comnosco e trará comsigo o nosso Guilherme sob qualquer pretexto. 
– Mas que pretexto, minha avó? 
– Ora, não faltam expedientes a um homem como o amigo Wright... 
E puzeram-se a fazer projectos alegremente. 

*
* *

N'essa noite fomos, como quasi sempre, juntas ao theatro. Eu quanto admiravamos o actor Irving no seu bello trabalho de Mephistopheles, Regina passeava o binoculo pela plateia do Lyceum e pelos camarotes n'uma anciedadefebril. 
Tu não te lembras que estás em Londres, e que isto é um mundo? perguntava-lhe a baroneza, batendo-lhe com o leque uma leve pancadinha no braço. 
Regina sorria-se e voltara para o palco a cabeça. 
– Esta noite não durmo, disse-me ella ao despedir-se, a pensar na minha felicidade de amanhã. 

*
* *

Eram seis horas da tarde quando entrei na sala de Regina. 
Encontrei-a radiante com seu vestido de pellucia branca muito justo e afagado; o cabello escuro, preso no alto com a sua costumada simplicidade; uma perola atarrachada, como um botão. A baroneza fazia paciencias sentada a uma mesa ao lado da janella. 
– Mr. Wright? perguntei-lhes
– Esperamol-o...
– Não póde tardar... replicou suplicando a baroneza, que, juntando as cartas e baralhando-as, perguntavam-me qual tinha sido o meu passeio n'esse dia. 
Demorei-me a fallar-lhe do que víra em Kew Garden, o bello e extensissimo jardim; das suas estufas esplendidas, onde florescem camelias e parasytas, todas as mais finas e exqueisitas plantas tropicaes; do lago, em que veceja a grande flor aquatica Victoria-Regia, natural do Amazonas, das margens do Tamiza, que subiramos n'um vapor; dos suburbios, das cottages da estrada por onde regressáramos á cidade... 
– Eu hoje não sahi, fallava a baroneza; é realmente estupido estar-se um dia todo no hotel, n'uma cidade d'estas; mas esperamos a todo o momento Mr. Wright. Não calcula; a minha Regina passou a noite em claro, nervosa, com febre, a pensar na visita do noivo... é uma verdadeira creança. 
A neta ria-se e beijava n 'uma effusao de alegria as faces morenas e engilhadas da avó. Sou tão feliz! affiançava ella, e ensaiava a maneira de receber o primo. 
– Olhe, ha de ser assim: deixo-o primeiro tomar-lhe a benção e... não, tenha paciencia, minha avósinha, permitta que seja o seu primeiro abraço, sim?... Santo Deus! que de cousas eu tenho para dizer a Guilherme! 
E projectava depois demorar-se em Londres uns mezes, casar-se, ir a Italia... Era o seu desejo ir a Italia...
– Primeiro vamos á Allemanha, observava a baroneza... 
– Pois  sim! iremos á Allemanha, á Russia, á Suissa, a toda parte, comtanto que vá o Guilherme também. 
– Se elle quizer... 
– Oh! se ha de querer!...
A baroneza tentava conter expansões de Regina, mas era trabalho inutil. 
– Quando se tem uma felicidade intensa não se olha convenções, murmurava ella a meia voz, estendendo de novo sobre a mesa de charão as cartas para a paciencia. 
N'este momento um creado trouxe-lhe n'uma salva um cartão; a baroneza depois de o lêr disse para a neta placidamente com um sorriso: 
– É elle, e; voltando-se para o creado, ordenou que fizesse entrar a visita. 
Regina empallideceu, e, levantando-se firmou a mão nas costas do fauteuil junto á mesa. 
Um silencio, o silencio da commoção, substituiu os alegres rumores de ha pouco. 
O creado correu por fim o reposteiro e Mr. Wright atravessou coxeando a sala, indo curvar-se respeitosamente em frente da baroneza. 
Regina, immovel, tinha os olhos muito brilhantes fixos na porta. 
– E o meu neto? interrogou a baroneza, levemente assustada. 
Mr. Wright sorriu. 
Regina olhava para o largo reposteiro côr de fogo. A baroneza com o pescoço estendido, os labios seccos entreabertos, parecia querer ouvir de perto a resposta do inglez, que, sem alterar nem de leve a physionomia, esperava evidentemente qualquer coisa. 
A baroneza, comprehendendo-o, apontou-lhe então uma cadeira, sem animo de dizer mais nada, como ferida de um presentimento. O inglez sentou-se e principiou: 
A senhora baronesa chegou tarde; Guilherme partiu ha, seguramente, vinte dias... 
– Para o Rio?! 
No, madam, para New-York, d'onde era filha a senhora com quem casou. 
– Com quem casou!? perguntou n'um falsete estrangulado a avó de Regina. É impossivel, Mr. Wright! é impossivel!
Regina, immovel, desviára os olhos da porta e fitava-os no rosto avermelhado do inglez, que, sorrindo, continuava: 
– Aquillo foi rapido, elle viu-a n'um dia, declarou-se no outro, pediu-a no immediato áquelle em que se declarou, e casou-se no immediato áquelle em que a pediu. Não se admirem! aqui não é raro acontecerem essas cousas. 
– Mas... e o meu consentimento? 
– Tudo se dispensa quando ha pressa, you know – respondeu o inglez. 
Regina silenciosa ouviu a narração do casamento do primo sem pestanejar... 
Quando Mr. Wright sahiu, a avó voltou-se para ella, e sem proferir uma palavra consoladora, achando impropria toda a expressão, contentou-se com abanar amargamente a cabeça, demorando pesarosa os olhos, vestira como n'um dia de nupcias; o grande dia illuminado pelo ridentissimo sol da felicidade! 
– Em vez de festa, tens luto, pobre creança adorada, dizia o doce olhar da bondosa senhora. 
Regina permanecia altiva e serena como uma estatua. Nem uma lagrima turvára a placidez de seu rosto. Conservou-se  assim durante  alguns segundos, depois atravessou a sala com passo firme, mas vagaroso, como se arrastasse um pesado manto de dores e soffrimentos, e sumiu-se atraz do reposteiro do seu quarto... 

*
* *

No dia seguinte Regina conversou muito á mesa, fincando os dentinhos claros no roast-beef sangrento. A baroneza é que, contra o costume, guardou silencio e não jantou. 
Ao levantarmo-nos, disse-me ella, apontando a neta: 
– Aquillo é uma heroina! 
E nunca mais alludimos, nem de leve, ao desenlace do seu querido sonho! 
Regina acompanhou-nos a Paris, onde procurou divertir-se muito; foi uma bella companheira, amavel, risonha e apreciadora. 
Gostava de sahir, de vêr, de criticar, era realmente incansavel. 
Vivemos reunidas durante o tempo, em que estivemos na grande capital, até que uma manhã despedimo-nos, e talvez para sempre, como acontece geralmente aos viajantes. Ella subiu para o norte, e eu desci para o sul. 

Lisboa, 1886. 


ALMEIDA, Júlia Lopes de. Regina. In: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.




Versão transcrita da obra a partir de publicação encontrada no Real Gabinete Português de Leitura pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves



Résultat de recherche d'images pour "regina júlia lopes de almeida""
Fotografia de Júlia Lopes de Almeida, sem data.

Nenhum comentário:

Postar um comentário