segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O REMORSO DA VISCONDESSA, 1887 - Conto de Júlia Lopes de Almeida - versão transcrita e ortografia atualizada

 

LUIZ GONÇALVES

 

A viscondessa era tida como uma senhora de espírito. Apesar de míope, nada escapava a sua perspicaz e fina observação. Era mesmo o que se pode chamar de uma mulher superior.

Casara por despeito, logo o amor não tivera o trabalho de intervir nessa aliança. De resto, a esposa que ama afiançava ela, torna-se escrava do marido, enquanto que uma, que se casou por...por casar-se enfim, conserva sempre a sua independência.

O visconde era um homem politico, passava horas inteiras no seu escritório, inventando todas as possibilidades de vir a ser ministro.

Tinham uma filha, morena, viva, alegre, volúvel, espelho onde inteira se refletia a alma.

- O que tencionas fazer da tua Judith?

- Que pergunta! uma senhora adorável, alegre, gentil, feliz.

- Isso por força, o que pergunto é se lhe darás agora uma preceptora estrangeira, ou se a meterás num colégio; ela já tem quase dez anos e...

- E não lhe dou nem uma nem outra cousa.

- Oh! Viscondessa!

- Escuta, Eugenia: convence-te de que a mulher não deve ser instruída, se quiser ser venturosa. Foste sempre muito romanesca, eu tenho o espírito mais prático e falo, portanto, com toda a autoridade. Estou com quarenta anos quase; tenho pensado, visto muito, e crê que as porcas mulheres verdadeiramente felizes, que encontrei, não são inteligentes. Nota bem: uma menina de grande instrução será invejada pelas outras e sofrerá as consequências de mil rivalidades, que, mesmo por serem rasteiras e pequeninas, a farão perder a paciência um dia. Será temida por uns e ridicularizada por muitos. Se eu ampliar o espirito da minha Judith num requintado apuro, ela não abafará com certeza os seus pensamentos, procurará manifestá-los, e terei assim o desgosto de vê-la...escritora, por exemplo.

- Desgosto?!

- Sim. Há um pronunciado horror pelas bas-bleus, bem sabes. Eu por mim detesto-as.

- Tu!

Não tanto como os homens. Se minha filha fosse escritora, quem se lembraria de casar com ela? Ninguém, e não ignoras que só no casamento está o verdadeiro futuro da mulher. Se eu pudesse viver muito e ter sempre comigo o meu tesouro! Concluiu a viscondessa, passando os dedos por entre os negros cabelos da amada Judith.

- Mas, tornou-lhe a amiga, se ela manifestar talento pelas artes, a escultura, a pintura?

- Ta...ta...ta! Nada disso! Os artistas não são felizes. Sempre ouvi dizer que as melhores inspirações são as que brotam da tristeza, e eu, entre um quadro ruim e uma valsa, não vacilo.

- Não entendo.

- Eu me explico. Se minha filha for, como quero, feliz, terá o seu pensamento absorto na própria felicidade e trabalhará por mero capricho, muito imperfeitamente, portanto; porém, se se entusiasmar, perderá horas de sono e de alegria, será ambiciosa, sedenta de glorias, e, como isso não alcança com facilidade, terá que chorar amargos desenganos.

- Pensas erradamente. Sou pobre, melhor do que ninguém o sabes, pois juro que hei de lutar ferrenhamente para instruir minha filha. Santo Deus! Quanta mulher ignorante vive isolada e arrepelando-se por não ter a compensação do saber! Não faças tão mau conceito dos homens! E, antes de tudo, imagina que a mulher instruída não vacilará, não sucumbirá, se um dia se vir só! Depois a tua Judith está numa posição muito alta, para não ser censurada, se for ignorante.

- Oh! Mas Judith será atraente, vestirá bem, montará bem, cantará romances...Que mal faz! Aparentará educação brilhante, que tem espirito para isso; fará impressão nas salas, que é afinal o que mais seduz as mulheres.  Não a constranjo, pois, aprenda o que quiser aprender, sem fadiga nem sacrifício.

- Bem, não falemos mais nisso.

E não falaram. Eugenia, viúva de um advogado pobre, retirou-se o mais que pode da sociedade, tendo o cuidado extremoso de ensinar a sua loira Amelia tudo o que podia. O tempo passou rápido para a viscondessa, que entretendo espirituosamente relações, não perdia bailes, concertos, saraus, tudo onde se distraísse. A sua Judith acompanhava-a sempre. O trato da sociedade é o melhor mestre, dizia ela à filha, que aprovava contente estas palavras. Judith cresceu. Era a imagem da mãe: baixinha, trigueira, mimosa, olhos aveludados, boca pequena, um encanto. Por isso não se admiraram quando um dia a foram pedir em casamento. Era um rapaz rico e elegante...Excelente! Judith casou.

Foi o primeiro dia de dor para a viscondessa. Via a filha tão alegre no seu vestido de noivado, tão despreocupada, tão bem, e sentia o coração apertar-se mais e mais, e fugia da sala para que não lhe notassem a comoção!...

Eugenia e Amelia procuravam consolá-la um pouco. Finda a cerimonia, a noiva partiu e a viscondessa desatou a chorar.

*

*           *

         Havia decorrido quatro anos. Amelia perdera a sua terna mãe, dias depois do casamento da amiga, e pediu, invocando toda sua coragem, uma recomendação da viscondessa. Via-se só, desejava entrar como educadora para a casa de alguma boa família. Foi satisfeito o pedido. A mestra tinha-se habituado já ao plácido viver da província, era da província a família que a tinha acolhido quando recebeu um dia este bilhete:

                  “Boa Amelia.

         Em vez de ensinar crianças, venha consolar uma velha. Estou só. Judith tem tantas preocupações que me não pode dispensar o seu tempo. Conversaremos aqui.

Sua amiga

                                                                                           Mathilde”

A viscondessa assinava com nome próprio! Amelia entristeceu-se lendo aquela carta. Ia responder que, não tendo concluído ainda a educação das discípulas, não sairia da casa, onde tantas atenções lhe eram dadas, mas refletiu; “a viscondessa era amiga de minha mãe...vou!”

E foi.

A viscondessa estava doente, nervosa, triste. Amelia procurava amenizar-lhe o espirito; ora tocava uma musica, que lhe trouxesse uma recordação agradável, ora lia, ora obrigava-a fazer um pequenino passeio dando-lhe carinhosamente o braço.

Uma noite, sentadas ambas ao pé da mesa, conversavam. A luz batia sobre a cabeça de Amelia, pondo uns reflexos fugitivos nos seus cabelos loiros. A viscondessa sorria ouvindo pela milésima vez falar a sua companheira da maneira deliciosa por que passava os serões no tempo da mãe.

- Olhe, senhora viscondessa, dizia, ficávamos as duas bem juntinhas; ela bordava, eu lia alto e estudava, era tão bom! Com que paciência me ensinou! Que santa que ela era!...Se há coisa que me pareça impossível, é não ter eu morrido quando morreu a sua boa amiga...

E levava a tecer elogios à finada, enquanto a viscondessa dizia para si: “como deve ser feliz a mãe, que é amada assim!”

Uns passos ligeiros interromperam as palavras saudosas de Amelia; a porta do corredor impelida com força abriu-se de par em par, e a figurinha nervosa de Judith apareceu no salão. Vinha pálida, os olhos brilhantes, os lábios trêmulos.

- Que é isto?! Perguntou a viscondessa admirada.

- Briguei com meu marido, respondeu Judith, atirando para longe de si a manta de rendas pretas.

- Tu?! ...Por quê!?...Oh! Filha, diga!

- Por uma ninharia, minha mãe...por causa de um vestido! É ridículo?...Não sei, é isto!

- Oh! Mas teu marido está a rir-se de ti, criança! Acalma-te, eu vou escrever-lhe para que venha falar-me.

- É inútil. Não nos veremos mais.

- Isso dizes agora...

- Foi o que ele me disse há pouco...

- Luiz acusou-me de perdulária, supérflua, volúvel; que brinquei com sua fortuna deixando-a cair por entre os dedos; que sou caprichosa e que o fiz muito desgraçado. Enganaste-me, tu não me amavas, casaste por casar e não me fazes feliz! O amor iludiu-me, pensei dar meu nome a uma mulher extremosa, e que o casamento tornaria grave, sensata, e dei-o a uma criança estroina, estragada, irremediavelmente estragada por uma educação defeituosa...

Oh! Ele disse tudo isso e calei-me... porque ele tem razão!

A viscondessa gelada sentia uma dor aguda no peito, como se lhe fincassem um punhal.

Indignada, subiu-lhe o sangue às faces e um tremor abalou-lhe o corpo enfraquecido. Amelia compreendeu-a e, querendo atenuar aquela agitação, beijou-a pensando: “em nome de minha mãe.”

Aquele beijo terno à viscondessa pareceu sentir a invocação da alma da amiga, cujos conselhos dispensara sempre; todo o sangue afluiu-lhe pesadamente ao coração e, estendendo os braços à chorosa Judith, murmurou num soluço:

- Perdoa-me!

 

                                                                                                          Rio de Janeiro, 1885.



ALMEIDA, Júlia Lopes de. Acta est fabula. IN: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.

Versão transcrita e atualizada pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves - rodrigues.alves@unesp.br


Um comentário:

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