A LUIZ GONÇALVES
A viscondessa era tida como
uma senhora de espírito. Apesar de míope, nada escapava a sua perspicaz e fina
observação. Era mesmo o que se pode chamar de uma mulher superior.
Casara por despeito, logo o
amor não tivera o trabalho de intervir nessa aliança. De resto, a esposa que
ama afiançava ela, torna-se escrava do marido, enquanto que uma, que se casou
por...por casar-se enfim, conserva sempre a sua independência.
O visconde era um homem
politico, passava horas inteiras no seu escritório, inventando todas as
possibilidades de vir a ser ministro.
Tinham uma filha, morena,
viva, alegre, volúvel, espelho onde inteira se refletia a alma.
- O que tencionas fazer da
tua Judith?
- Que pergunta! uma senhora
adorável, alegre, gentil, feliz.
- Isso por força, o que
pergunto é se lhe darás agora uma preceptora estrangeira, ou se a meterás num colégio;
ela já tem quase dez anos e...
- E não lhe dou nem uma nem
outra cousa.
- Oh! Viscondessa!
- Escuta, Eugenia: convence-te
de que a mulher não deve ser instruída, se quiser ser venturosa. Foste sempre
muito romanesca, eu tenho o espírito mais prático e falo, portanto, com toda a
autoridade. Estou com quarenta anos quase; tenho pensado, visto muito, e crê
que as porcas mulheres verdadeiramente felizes, que encontrei, não são
inteligentes. Nota bem: uma menina de grande instrução será invejada pelas
outras e sofrerá as consequências de mil rivalidades, que, mesmo por serem
rasteiras e pequeninas, a farão perder a paciência um dia. Será temida por uns
e ridicularizada por muitos. Se eu ampliar o espirito da minha Judith num
requintado apuro, ela não abafará com certeza os seus pensamentos, procurará manifestá-los,
e terei assim o desgosto de vê-la...escritora, por exemplo.
- Desgosto?!
- Sim. Há um pronunciado
horror pelas bas-bleus, bem sabes. Eu por mim detesto-as.
- Tu!
Não tanto como os homens. Se
minha filha fosse escritora, quem se lembraria de casar com ela? Ninguém, e não
ignoras que só no casamento está o verdadeiro futuro da mulher. Se eu pudesse
viver muito e ter sempre comigo o meu tesouro! Concluiu a viscondessa, passando
os dedos por entre os negros cabelos da amada Judith.
- Mas, tornou-lhe a amiga,
se ela manifestar talento pelas artes, a escultura, a pintura?
- Ta...ta...ta! Nada disso!
Os artistas não são felizes. Sempre ouvi dizer que as melhores inspirações são
as que brotam da tristeza, e eu, entre um quadro ruim e uma valsa, não vacilo.
- Não entendo.
- Eu me explico. Se minha
filha for, como quero, feliz, terá o seu pensamento absorto na própria
felicidade e trabalhará por mero capricho, muito imperfeitamente, portanto; porém,
se se entusiasmar, perderá horas de sono e de alegria, será ambiciosa, sedenta
de glorias, e, como isso não alcança com facilidade, terá que chorar amargos
desenganos.
- Pensas erradamente. Sou
pobre, melhor do que ninguém o sabes, pois juro que hei de lutar ferrenhamente para
instruir minha filha. Santo Deus! Quanta mulher ignorante vive isolada e
arrepelando-se por não ter a compensação do saber! Não faças tão mau conceito
dos homens! E, antes de tudo, imagina que a mulher instruída não vacilará, não sucumbirá,
se um dia se vir só! Depois a tua Judith está numa posição muito alta, para não
ser censurada, se for ignorante.
- Oh! Mas Judith será atraente,
vestirá bem, montará bem, cantará romances...Que mal faz! Aparentará educação
brilhante, que tem espirito para isso; fará impressão nas salas, que é afinal o
que mais seduz as mulheres. Não a constranjo,
pois, aprenda o que quiser aprender, sem fadiga nem sacrifício.
- Bem, não falemos mais nisso.
E não falaram. Eugenia,
viúva de um advogado pobre, retirou-se o mais que pode da sociedade, tendo o
cuidado extremoso de ensinar a sua loira Amelia tudo o que podia. O tempo
passou rápido para a viscondessa, que entretendo espirituosamente relações, não
perdia bailes, concertos, saraus, tudo onde se distraísse. A sua Judith
acompanhava-a sempre. O trato da sociedade é o melhor mestre, dizia ela à filha,
que aprovava contente estas palavras. Judith cresceu. Era a imagem da mãe:
baixinha, trigueira, mimosa, olhos aveludados, boca pequena, um encanto. Por
isso não se admiraram quando um dia a foram pedir em casamento. Era um rapaz
rico e elegante...Excelente! Judith casou.
Foi o primeiro dia de dor para
a viscondessa. Via a filha tão alegre no seu vestido de noivado, tão
despreocupada, tão bem, e sentia o coração apertar-se mais e mais, e fugia da
sala para que não lhe notassem a comoção!...
Eugenia e Amelia procuravam
consolá-la um pouco. Finda a cerimonia, a noiva partiu e a viscondessa desatou
a chorar.
*
* *
Havia decorrido quatro anos. Amelia perdera a sua terna mãe,
dias depois do casamento da amiga, e pediu, invocando toda sua coragem, uma
recomendação da viscondessa. Via-se só, desejava entrar como educadora para a
casa de alguma boa família. Foi satisfeito o pedido. A mestra tinha-se
habituado já ao plácido viver da província, era da província a família que a tinha
acolhido quando recebeu um dia este bilhete:
“Boa Amelia.
Em vez de ensinar crianças, venha consolar uma velha. Estou
só. Judith tem tantas preocupações que me não pode dispensar o seu tempo.
Conversaremos aqui.
Sua amiga
Mathilde”
A viscondessa assinava com
nome próprio! Amelia entristeceu-se lendo aquela carta. Ia responder que, não
tendo concluído ainda a educação das discípulas, não sairia da casa, onde
tantas atenções lhe eram dadas, mas refletiu; “a viscondessa era amiga de minha
mãe...vou!”
E foi.
A viscondessa estava doente,
nervosa, triste. Amelia procurava amenizar-lhe o espirito; ora tocava uma musica,
que lhe trouxesse uma recordação agradável, ora lia, ora obrigava-a fazer um
pequenino passeio dando-lhe carinhosamente o braço.
Uma noite, sentadas ambas ao
pé da mesa, conversavam. A luz batia sobre a cabeça de Amelia, pondo uns
reflexos fugitivos nos seus cabelos loiros. A viscondessa sorria ouvindo pela milésima
vez falar a sua companheira da maneira deliciosa por que passava os serões no
tempo da mãe.
- Olhe, senhora viscondessa,
dizia, ficávamos as duas bem juntinhas; ela bordava, eu lia alto e estudava,
era tão bom! Com que paciência me ensinou! Que santa que ela era!...Se há coisa
que me pareça impossível, é não ter eu morrido quando morreu a sua boa amiga...
E levava a tecer elogios à finada,
enquanto a viscondessa dizia para si: “como deve ser feliz a mãe, que é amada
assim!”
Uns passos ligeiros
interromperam as palavras saudosas de Amelia; a porta do corredor impelida com
força abriu-se de par em par, e a figurinha nervosa de Judith apareceu no
salão. Vinha pálida, os olhos brilhantes, os lábios trêmulos.
- Que é isto?! Perguntou a
viscondessa admirada.
- Briguei com meu marido,
respondeu Judith, atirando para longe de si a manta de rendas pretas.
- Tu?! ...Por quê!?...Oh! Filha,
diga!
- Por uma ninharia, minha
mãe...por causa de um vestido! É ridículo?...Não sei, é isto!
- Oh! Mas teu marido está a
rir-se de ti, criança! Acalma-te, eu vou escrever-lhe para que venha falar-me.
- É inútil. Não nos veremos
mais.
- Isso dizes agora...
- Foi o que ele me disse há
pouco...
- Luiz acusou-me de
perdulária, supérflua, volúvel; que brinquei com sua fortuna deixando-a cair
por entre os dedos; que sou caprichosa e que o fiz muito desgraçado.
Enganaste-me, tu não me amavas, casaste por casar e não me fazes feliz! O amor
iludiu-me, pensei dar meu nome a uma mulher extremosa, e que o casamento
tornaria grave, sensata, e dei-o a uma criança estroina, estragada,
irremediavelmente estragada por uma educação defeituosa...
Oh! Ele disse tudo isso e
calei-me... porque ele tem razão!
A viscondessa gelada sentia
uma dor aguda no peito, como se lhe fincassem um punhal.
Indignada, subiu-lhe o
sangue às faces e um tremor abalou-lhe o corpo enfraquecido. Amelia
compreendeu-a e, querendo atenuar aquela agitação, beijou-a pensando: “em nome
de minha mãe.”
Aquele beijo terno à viscondessa
pareceu sentir a invocação da alma da amiga, cujos conselhos dispensara sempre;
todo o sangue afluiu-lhe pesadamente ao coração e, estendendo os braços à chorosa
Judith, murmurou num soluço:
- Perdoa-me!
Rio de Janeiro,
1885.
ALMEIDA, Júlia Lopes de. Acta est fabula. IN: Traços e Illuminuras. Lisboa: Castro Irmão, 1887.
Versão transcrita e atualizada pela Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves - rodrigues.alves@unesp.br
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